sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

O Corvo e a Carta




            Olho para a estrada e não vejo ninguém. Estou aqui há muito tempo. A minha esperança vai muito além da minha imaginação. Antes que o dia acabe, preciso saber de tudo. Não posso continuar caminhando sem uma resposta definitiva. Eu vim até aqui e daqui seguirei com a certeza de que a vida vai valer a pena. O sol está forte e o calor é intenso. A poeira se levanta fazendo redemoinho, levando as folhas secas espalhadas pelo chão. Estou sentado sobre uma pedra, com vista para uma imensa planície. No alto, um corvo voa com os olhos fixos à caça de alguma carniça para alimentar os seus filhotes. Logo mais abaixo, um gavião se atira em voo rasante, abocanhando uma pequena presa. Cada um fazendo o trabalho de alimentar os filhotes, mesmo que para isso tenha que matar. O céu está calmo, parece que o artista do universo pintou o infinito com grande inspiração. No lado esquerdo da planície, o lago dos patos recebe, em grande estilo, dezenas de gansos selvagens. Depois de viajarem milhares de quilômetros, eles bebem água e seguem viagem para o sul da Patagônia.
            Nesse meio tempo, passo por um pequeno sono. Estou cansado e preciso relaxar um pouco. De repente, ouço um ronco, que parece de um caminhão, daqueles bem antigos.  Abro os olhos, e eis que desce do caminhão, uma moça aparentando 25 anos. Aproxima-se de mim e pergunta:
            - O senhor conhece o Valdo?
            - Aquele que escreve carta para o povo da vila?
            - Isso mesmo.
            A moça vai falando de onde veio e para onde vai, mas com o olhar triste. Até parecia que estava trazendo uma notícia nada agradável. De qualquer maneira, fiquei escutando ela falar.
            - Preciso entregar uma carta para o Valdo. Eu não sei por onde começar. Não será nada agradável o que ele vai saber. Fiquei com essa missão. Não posso deixar de cumpri-la.
            - Que notícia é essa?
            - Desculpe, mas estamos falando e nem perguntei o seu nome.
            - Eu sou o Valdo.
            - Estou aqui esperando, mas não por você, e sim pela minha filha. É natal e quero passar o final de ano ao lado dela.
            O meu coração já me dizia a um bom tempo que iria recebia uma notícia ruim. Têm coisas na vida que nem precisam ser ditas. A intuição de um velho pai sabe o que se passa na vida dos filhos.
            - E você, como se chama?
            - Irene, a amiga da Julia, a sua filha. Disseram que o senhor morava no outro lado do rio.
            - Eu vim até aqui porque era neste local que eu e a minha filha conversávamos sobre a vida. É também aonde eu mato a saudade dela. Foi aqui também que nos despedimos, quando ela foi estudar na cidade grande. Ela devia ter uns 16 anos. Ainda nova, mas muito determinada. Queria estudar e ser alguém. Faz tempo que não vejo mais a Júlia. É a única filha que tenho.
            - Ela falava muito no senhor, com lágrimas nos olhos, contava como era viver no interior. Nesta carta ela conta como era na cidade. Relata também as imensas dificuldades que passou para cursar a faculdade. Os momentos felizes quando conheceu o Mário. Ele era uma pessoa extremamente ciumenta. Ela queria que o senhor o conhecesse. Bom..., eu não vou contar tudo. Na carta, o senhor saberá os detalhes. O que está escrito foi bem antes do acontecido. Ela não teve tempo de colocar no correio. Eu a encontrei ao lado do corpo.
            Pensei comigo: nem precisa contar. Eu já sei de tudo. Tive um sonho na noite passada. Ao acordar, com os olhos cheios de lágrimas, gritei pelo nome da minha filha. No sonho ela dizia que estava bem, vivendo num lugar muito bonito, junto com os anjos. Não acreditei. Não podia ser, mas o sonho era tão real. Ela estava sorridente e feliz.  As imagens ainda permanecem na minha mente.
            - Não posso me atrasar por aqui. Preciso voltar à cidade. Como disse anteriormente, na carta o senhor terá todos os detalhes. É melhor se preparar, porque não será fácil. Neste envelope tem tudo, até mesmo o número da conta no banco, onde tem dinheiro para o senhor, e tem também os documentos da faculdade.
            Nesse meio tempo, no momento em que ela entregava a encomenda, o Corvo, num voo rasante, pegou o envelope, e levou-o para as alturas. Lá de cima, a ave me olhava com os olhos tristes, como se estivesse me consolando. Quem sabe o corvo, conhecedor da minha vida, quis, com o gesto, evitar maior sofrimento.
            Depois daquele dia, nunca mais vi o corvo. Ele levou consigo, para bem longe, as tristes notícias da minha amada filha. É a vida, mais uma vez, pregando surpresas que a gente não entende. Hoje é a alegria, amanhã é a tristeza. Assim é a morte.

sábado, 25 de dezembro de 2010

 Fantasma Libertino


Quero desfalecer nos teus braços
Braços que sempre embala meu corpo
Corpo que espera o apito final
Quero o prazer mais intenso
Intenso que poderá até embelezar
A minha triste alma

Sou o fruto de um amor fortuito
Fortuito porque não foi eterno
Nem poderia ser
Uma prostituta nunca ama
Quando ama
Não é amada
E quanto é amada é desgraçada
Pela sociedade

Preciso do teu desejo
Não vivo sem o prazer
De sentir a tua mordida
Nos meus lábios
Ressequidos pela falta dos teus gemidos
Não sei viver sem o teu perfume
Perfume que me embriaga
Embriaga até o fim da noite
E durante o dia
Ainda sinto o teu feitiço

Você deveria viver longe
Tão longe
Que nem mesmo a saudade seria capaz
De enlouquecer o meu coração
A minha casa continua a mesma
Imoral por excelência
Desarrumada como sempre
Não sei por anda
A única coisa que ainda sei
Que você é o meu fantasma
Perambula pela noite
Procura-me para fazer amor
Do jeito e da forma
Que somente nós sempre fomos capazes

Se eu sou libertino
Foi com você que aprendi
Aprendi tanta coisa
Coisa que ainda hoje esta guardada
Guardada para sempre
Na memória
Memória suja de um canalha
Canalha sem beira
Que algumas vezes beira a loucura
Loucura que chega a ser doce
Outras vezes apimentada
Apimentada pelo suor do teu corpo
Corpo que nas derradeiras madrugadas
Sente tocar o desejado corpo
Não tenha medo
Porque sou a tua vontade
Vontade de desaparecer através
Dos desfiladeiros
Desfiladeiros que guardam os segredos dos amantes
Amantes que morrem de tanto amar
Amar um amor proibido e fantasioso
Fantasioso porque não tem fundamento
Quebrar as amarras de uma sociedade hipócrita
Hipócrita porque vive atrás dos ventos conservadores

Quando resolver voltar
Estou aqui na varanda da casa dos imorais
Imorais porque acreditam na poesia
Poesia que alimenta a sede da paixão
Não demore em chegar
Porque talvez encontre a porta fechada
Fechadas para a vida
Vida que para nós imorais
É passageira
Se resolver voltar com a primavera
Não se esqueça de trazer uma rosa vermelha
Para embelezar o quarto dos nossos prazeres
Prazeres que matam a nossa profunda vontade de amar

Se por ventura resolver
Continuar no mundo da vida fácil
Continuarei sonhando com você
Vendo a tua imagem grudada em mim
Observando os teus passos nas ruas
Nas noites e nas madrugadas
Vou imaginar você dormindo nos meus braços
Chorando de saudade
Gemendo de prazer
Brigando comigo
Tendo ciúmes violentos
Violentos como os ventos uivantes
Que massacram as montanhas
Que circundam a casa dos imorais




quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

A Sentença

            Estou dormindo com a noite. Não vivo sem ela. Quanto mais escura é a noite, mais tenho vontade de celebrar a chegada da madrugada. No escuro, consigo ver as entranhas da minha alma. O silêncio, juntamente com a penumbra, faz com que a minha mente se aproxime do desconhecido. Nessas horas o melhor é procurar os becos, principalmente, os que não têm saída. Sentar na calçada e admirar as conversas das estrelas. Ouvir o grito desesperado do medo. Rir do vento frio que penetra nos esconderijos, fazendo com que as corujas fujam loucamente.
            - Você está pensando o que eu estou pensando... Agora sou dono da tua mente...
            Olho para o lado e não vejo ninguém. São 4 horas da madrugada, mas sinto que estou acompanhado. Parece que uma sombra caminha ao meu lado. Um frio misturado ao medo toma conta de mim. Um medo que chega e traz um desejo fora do padrão.
            - Você é louco como eu! – A voz volta a dizer coisas esquisitas.
            - Quem é você? Por que não se apresenta?
            Enquanto questiono essa presença invisível, as estrelas desaparecem no firmamento. As nuvens correm de um lado para o outro como se estivessem se escondendo de algo violento. O vento agita a Rua João Pinto, e a velha Desterro mais parece a residência do estranho.
            - Estou atrás de você há muito tempo. Não adianta fugir. Sou o teu lado escuro e sanguinário. O lado que você tem medo e sempre escondeu.
            Com o som daquela voz nos meus ouvidos, tento escapar e me refugiar num bar repleto de boêmios, mas não adianta. Estou cercado pelas sombras, pelos ruídos invisíveis. Escuto passos se aproximando...
            Pergunto mais uma vez:
            - Por que não diz o que quer?  Não tem coragem de encarar a verdade, ou quer apenas amedrontar?
            - Pode pensar o que você quiser. Hoje é o dia do acerto de contas. Serás levado para o tribunal da história, o grande tribunal dos justos. Podes pedir ajuda a quem quiser; não vais escapar desta vez!
            Na medida em que aquela voz da escuridão ia falando coisas do outro mundo, a paisagem do local também ia se modificando. Aos poucos, eu estava me vendo sentado num tribunal, com juiz e promotor. Ao lado deles, cinco pessoas de preto olhavam-me com ódio.       Não estava entendendo nada. Tentei gritar, mas o meu grito foi abafado pelas palavras de um promotor raivoso.
            - Até que enfim! Conseguimos prender o homem das sete vidas! Você fugiu durante séculos e agora se encontra à nossa frente, pronto para receber a condenação mais esperada por todos. Estais aqui, parecendo um coelho assustado, nem parece o grande líder e revolucionário que amedrontou o mundo!
            - Você! O feroz comandante jacobino, que mandou matar inúmeros líderes e pessoas inocentes, fez julgamento sem prova, inventou traições para aniquilar seus adversários. Considerava-se um Deus, inaugurou a guilhotina, mas não foi morto por ela. Colocou outra pessoa no lugar. No dia seguinte disse para todos que o grande jacobino tinha sido guilhotinado. Como o povo é ingênuo e desinformado, acreditou. Às vezes, o povo fica cego  frente aos tiranos, incapaz de procurar a verdade. Ninguém investigou nada; você comprou tudo e todos. A história foi contada pelos vencedores. Hoje você não vai falar nada, somente ouvir as verdades que tanto maltratam o teu duro coração e a consciência.
            Eu suava frio. Beliscava o meu braço. Não acreditava no que estava acontecendo, e muito menos, ouvindo. Era coisa absurda. Ouvir um homem vestindo roupa de séculos passados e ainda me acusando de coisas que nunca ouvi e muito menos participei. O recinto cheirava mofo. Uma lamparina clareava o local. As pessoas pareciam enlouquecidas, se agitavam para todos os lados. Olhavam para mim com desdém. Enquanto isso, o dito promotor, espumando pela boca, continuava o seu enfadonho e louco discurso.
            - O jacobino vai morrer!  Irá sucumbir de forma eterna. Nós preparamos uma grande guilhotina. A tua cabeça vai rolar rua abaixo. Depois desse dia, estaremos fazendo justiça, mesmo depois de três séculos.
            - As pessoas que estavam sentadas, como juradas, entregaram um papel ao juiz, falando sobre a minha condenação.
            - Ele será guilhotinado. A sua cabeça será jogada aos cães. Cumpra-se a sentença!
            Ao acordar, com a chegada do sol, senti uma profunda dor na garganta. Não conseguia falar. Suava frio e muito trêmulo. Estava assustado.
            Depois daquele dia, durmo com a chegada da noite. Nunca mais andei pela Rua João Pinto. A minha vida é um inferno. Ainda ouço a voz do promotor.

NÃO VOU ADORMECER SEM DEGUSTAR OS MEUS SONHOS

Ninguém prende um pensamento. Ninguém aprisiona uma alma ou um coração. O amor é livre e o gostar caminha junto com a liberdade. O desejo ...