quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

A Sentença

            Estou dormindo com a noite. Não vivo sem ela. Quanto mais escura é a noite, mais tenho vontade de celebrar a chegada da madrugada. No escuro, consigo ver as entranhas da minha alma. O silêncio, juntamente com a penumbra, faz com que a minha mente se aproxime do desconhecido. Nessas horas o melhor é procurar os becos, principalmente, os que não têm saída. Sentar na calçada e admirar as conversas das estrelas. Ouvir o grito desesperado do medo. Rir do vento frio que penetra nos esconderijos, fazendo com que as corujas fujam loucamente.
            - Você está pensando o que eu estou pensando... Agora sou dono da tua mente...
            Olho para o lado e não vejo ninguém. São 4 horas da madrugada, mas sinto que estou acompanhado. Parece que uma sombra caminha ao meu lado. Um frio misturado ao medo toma conta de mim. Um medo que chega e traz um desejo fora do padrão.
            - Você é louco como eu! – A voz volta a dizer coisas esquisitas.
            - Quem é você? Por que não se apresenta?
            Enquanto questiono essa presença invisível, as estrelas desaparecem no firmamento. As nuvens correm de um lado para o outro como se estivessem se escondendo de algo violento. O vento agita a Rua João Pinto, e a velha Desterro mais parece a residência do estranho.
            - Estou atrás de você há muito tempo. Não adianta fugir. Sou o teu lado escuro e sanguinário. O lado que você tem medo e sempre escondeu.
            Com o som daquela voz nos meus ouvidos, tento escapar e me refugiar num bar repleto de boêmios, mas não adianta. Estou cercado pelas sombras, pelos ruídos invisíveis. Escuto passos se aproximando...
            Pergunto mais uma vez:
            - Por que não diz o que quer?  Não tem coragem de encarar a verdade, ou quer apenas amedrontar?
            - Pode pensar o que você quiser. Hoje é o dia do acerto de contas. Serás levado para o tribunal da história, o grande tribunal dos justos. Podes pedir ajuda a quem quiser; não vais escapar desta vez!
            Na medida em que aquela voz da escuridão ia falando coisas do outro mundo, a paisagem do local também ia se modificando. Aos poucos, eu estava me vendo sentado num tribunal, com juiz e promotor. Ao lado deles, cinco pessoas de preto olhavam-me com ódio.       Não estava entendendo nada. Tentei gritar, mas o meu grito foi abafado pelas palavras de um promotor raivoso.
            - Até que enfim! Conseguimos prender o homem das sete vidas! Você fugiu durante séculos e agora se encontra à nossa frente, pronto para receber a condenação mais esperada por todos. Estais aqui, parecendo um coelho assustado, nem parece o grande líder e revolucionário que amedrontou o mundo!
            - Você! O feroz comandante jacobino, que mandou matar inúmeros líderes e pessoas inocentes, fez julgamento sem prova, inventou traições para aniquilar seus adversários. Considerava-se um Deus, inaugurou a guilhotina, mas não foi morto por ela. Colocou outra pessoa no lugar. No dia seguinte disse para todos que o grande jacobino tinha sido guilhotinado. Como o povo é ingênuo e desinformado, acreditou. Às vezes, o povo fica cego  frente aos tiranos, incapaz de procurar a verdade. Ninguém investigou nada; você comprou tudo e todos. A história foi contada pelos vencedores. Hoje você não vai falar nada, somente ouvir as verdades que tanto maltratam o teu duro coração e a consciência.
            Eu suava frio. Beliscava o meu braço. Não acreditava no que estava acontecendo, e muito menos, ouvindo. Era coisa absurda. Ouvir um homem vestindo roupa de séculos passados e ainda me acusando de coisas que nunca ouvi e muito menos participei. O recinto cheirava mofo. Uma lamparina clareava o local. As pessoas pareciam enlouquecidas, se agitavam para todos os lados. Olhavam para mim com desdém. Enquanto isso, o dito promotor, espumando pela boca, continuava o seu enfadonho e louco discurso.
            - O jacobino vai morrer!  Irá sucumbir de forma eterna. Nós preparamos uma grande guilhotina. A tua cabeça vai rolar rua abaixo. Depois desse dia, estaremos fazendo justiça, mesmo depois de três séculos.
            - As pessoas que estavam sentadas, como juradas, entregaram um papel ao juiz, falando sobre a minha condenação.
            - Ele será guilhotinado. A sua cabeça será jogada aos cães. Cumpra-se a sentença!
            Ao acordar, com a chegada do sol, senti uma profunda dor na garganta. Não conseguia falar. Suava frio e muito trêmulo. Estava assustado.
            Depois daquele dia, durmo com a chegada da noite. Nunca mais andei pela Rua João Pinto. A minha vida é um inferno. Ainda ouço a voz do promotor.

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