domingo, 31 de julho de 2011

Enfermeira

Estou envolvido numa escuridão total. Há duas noites e dois dias que não saio do meu quarto. Fumo e bebo sem parar, já escrevi várias histórias, todas curtas e intensas. A minha mente não para de viajar, por algum momento chego a pensar que estou perdendo o juízo. Isso acontece toda vez que me lembro da minha última internação. Sofri muito na clínica. Os médicos diagnosticaram que sofro de uma grave doença mental. Eu não acredito neles, talvez eu seja vitima da sociedade que cobra tudo, até mesmo o modo de pensar. Se você é diferente, torna-se alguém perigoso e precisa de tratamento. Sendo assim, é escrevendo que consigo me libertar. É bebendo e fumando que consigo livrar os meus pensamentos sobre a dor, a perseguição e a morte.
Quando o dia começou a nascer, abri a janela do meu quarto para deixar o vento da manhã adentrar e assim limpar a intensa fumaça que tomou conta dos meus aposentos. Nesse momento, alguém bateu a minha porta. Abri, e uma linda moça, vizinha do andar de cima, diz:
- Bom dia, escritor! Há dois dias que bato a sua porta e você não atende.
- Bom dia. O que você quer? Algum problema? – Perguntei secamente.
- Desculpe, mas fiquei preocupada com você. – Respondeu - desconcertada com as minhas perguntas.
- Não se preocupe comigo. Não convido você para entrar porque o meu apartamento está totalmente desarrumado. – Acrescentei.
- Não precisa. Agora estou tranquila. Está tudo bem com você. Mas quando sobrar um tempo, gostaria de conversar um pouco. Nunca tive oportunidade de conhecer um escritor famoso. Só conheço você pelos livros e artigos publicados em jornais. – Revelou, tentando uma aproximação.
- Está bem, numa hora dessas conversaremos. Agora, se você me der licença, preciso tomar um banho e comer alguma coisa, estou faminto.
- Fique à vontade, já estou indo embora. Qualquer coisa que precisar pode me chamar. O meu nome é Marlene, moro no apartamento 301.
- Obrigado Marlene. O meu nome você já sabe.
- Sei sim. É o famoso escritor Flamingo.
A conversa com a minha vizinha até que foi boa, mas me deixou preocupado, estava querendo entrar na minha casa sem ser devidamente convidada. De certa maneira ajudou a quebrar o silêncio reinante. No momento em que a porta fechou, voltei para o meu mundo. Um mundo estranho, que somente eu tenho acesso e mais ninguém, que foi construído aos poucos. Essa construção teve início lá na minha infância. Os meus pais se drogavam na minha frente. Para fugir da situação, eu me refugiava no meu quarto. Só saía quando eles adormeciam, ou saíam para rua à procura de mais droga. Fui crescendo vendo as pessoas que eu amava se destruindo. Até que um dia, a morte acabou levando os dois. A alternativa foi viver com a minha avó, que também tinha problemas com bebida e não demorou muito a falecer.
Aos dezoitos anos de idade, vivendo sozinho e sem família, iniciei a minha carreira de escritor. Os meus primeiros escritos se basearam na minha experiência de vida. Relatei os acontecimentos amorosos dos meus pais e o alcoolismo da minha avó. Depois que eles morreram, conheci a vida noturna. A solidão continuou sendo a minha companheira.
Por sorte herdei uma pensão da minha avó, e com isso não foi necessário trabalhar. Em seguida comecei a receber recursos financeiros pela venda de artigos publicados em jornais. Toda a experiência dramática da minha família me contaminou profundamente. Herdei o vício da bebida e ainda loucura do meu avô. Nas vezes que fui internado para tratamento do alcoolismo, foi porque o meu editor teve a coragem de me socorrer, chamando um médico.
Durante trinta anos vivi o meu mundo. Escritor de talento para uns e louco para a sociedade. Na minha cabeça eu tinha a certeza de que não sairia jamais da situação em que me encontrava. Os meus relacionamentos amorosos sempre foram rápidos e sem compromissos. A maioria deles era com prostitutas. As mulheres foram passageiras na minha vida, talvez tivessem medo de mim. Tudo era esquisito e o silêncio se fazia presente. Qualquer um que tentasse se aproximar, logo era descartado, muitas vezes de forma violenta. Sendo assim, nunca foi possível manter qualquer relacionamento.
Passaram-se duas semanas da conversa que mantive com Marlene. Eu já ia até me esquecendo dela. Certo dia, ao sair do meu apartamento, dei de cara com a vizinha do 301. Tentei me esquivar, mas não teve jeito. Ela colocou-se a minha frente, dizendo:
- Hoje você não escapa! Quero muito conversar com o escritor que tanto admiro.
- Pode ser outro dia? – Perguntei, tentando despistar.
- Não! Tem que ser hoje! – Respondeu taxativamente.
- Está bem, entre então. Não repare a sujeira da minha casa. A faxineira só vem na próxima semana.
- Não vim aqui para reparar nada, somente trocar algumas palavras com uma pessoa maravilhosa e repleta de talentos. – Disse.
Ficamos conversando a noite inteira. Ela bebeu comigo. Até trocamos olhares sensuais em alguns instantes. Mas ficamos nisso. Contou-me algumas passagens da sua vida, mas quem mais falou fui eu. Pela primeira vez na vida, consegui externar a imensa carga emocional represada ao longo do tempo. Marlene, com sua maneira autoritária, outras vezes, meiga, conseguiu abrir a porta do meu coração. Parece que ela veio cuidar das minhas feridas. Chegava a ser igual a uma enfermeira, com tanto zelo por mim. Em momento algum me criticou. No final da noite, quando achei que tinha ouvido tudo dela, na despedida disse:
- Eu descobri a senha do teu coração. Agora serei a tua dona. Só vai fazer aquilo que eu mandar. No fundo você é uma pessoa carente e frágil. Mas, fique tranquilo, não falarei nada para ninguém das coisas que conversamos. Outro dia, quem sabe, poderemos continuar a nossa conversa.
Senti-me nu na frente dela. Aquela mulher, sem mais nem menos, entrou na minha casa, descobriu os meus podres e ainda disse que era a minha dona e que eu era fraco. Eu precisava fazer alguma coisa. Não disse nada, somente agi.
Depois do serviço feito, voltei para a mesa na biblioteca e escrevi uma história sobre a vida de uma enfermeira intrometida que foi estrangulada e seu corpo jogado numa lixeira no condomínio onde residia.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Ingênua Flor

Ela estava sentada na varanda da casa, observando o mar e as ondas quebrando na areia. Cada onda era uma foto que vinha e voltava. As imagens do passado fluíam como filme, às vezes coloridas, às vezes em preto e branco, passando pelo presente e viajando para o futuro, para tão longe onde seus olhos nem pudessem enxergar, quem sabe, para o outro lado do tempo. Já tinha navegado por muitos mares e conhecido dezenas de portos. Em todos eles deixou inesquecíveis saudades. A vida dela era uma folha corrida com histórias de amor, muita dor, angústia, emoção e alegria, que se perderam ao longo da caminhada.

O corpo já estava gostosamente cansado de tanto viver, de tanto olhar para o sol e de tanto se esconder da escuridão da noite. Muitas vezes tinha confessado que viveu o bastante para fechar os olhos e acordar na outra margem do oceano. Em diversos momentos, nas longas tardes de outono, via ao longe a hora chegando, vindo na sua direção, com flores e músicas em sua homenagem.

Muitas primaveras haviam passado, inúmeras alegrias e dezenas de tristezas fizeram parte da existência. Para uma mulher, a vida tinha sido bela e ao mesmo tempo emocionalmente cruel. Deu tudo e tudo tirou, deixando somente a solidão como sua derradeira companheira. Foi cortejada por belos homens e rejeitada por outros. Mas, de todos, um marcou muito a sua vida. Era o inesquecível Coiote. A imagem dele fazia com que o infinito viajasse eternamente deixando belas paisagens.

Mesmo andando por vários lugares das grandes cidades, ele permanecia caminhando suavemente dentro do coração e da alma. Nunca teve a deselegância de sair, apenas ficava dando leves toques de insustentáveis saudades. Por esse homem valeu a pena ter vivido até aquela data. Nunca foi embora, apenas ficou ao lado dos seus sentimentos, como se fosse um amante à espera da amada, ou uma gostosa sombra. Mas o tempo viajou depressa, deixando marcas pelo corpo.

Da sua beleza pouca coisa restou, as linhas do tempo tomaram conta de tudo e muitas cicatrizes em seu coração. O destino foi amargo para com ela, roubou o encanto. As imagens continuavam indo e vindo.

Paty estava sozinha e todos desapareceram. Até mesmo a encantadora beleza foi embora. Estava gorda e cheia de marcas pelas coxas e bunda. Os homens que juraram envelhecer com ela fugiram nas esquinas das noites. Foram tantas as noites, que nunca conseguiu contar, muito menos a quantidade de madrugadas que foi usada sexualmente. Nunca quis amar, exceto o seu grande amor: o saudoso Coiote.

Desde que se viu mulher dentro daquele pequeno mundo, sabia que teria uma vida profundamente embriagante com desconcertantes prazeres, mas que deixariam rastros de amor, paixões, ódios e chorosas saudades em diversos corações. Nasceu para uma vida de ilusão. Sabia que seria de muitos homens e que no final da vida estaria sozinha, catando os cacos da enlouquecida existência.

O sol começava a se aproximar da grande montanha, deixando o clima mais ameno e com um gostoso frescor. A mente continuava a viajar. Até parece que foi ontem que saiu da pequena cidade do Oeste de Santa Catarina.

Os anos se passaram como uma linda noite de ilusão, mas as emoções ainda se faziam violentamente presentes na alma. Às vezes chorava quando assistia ao filme da vida que teimava em passar lentamente. Estava vivendo e degustando as horas e as noites que foram tão belas que até hoje ainda sente os cacos das emoções que não morreram, apenas se fazem presentes de forma glamourosa.

Enquanto estava perdida com esses pensamentos do passado, ouviu uma voz que se aproximava:

- Dona Paty, é melhor a Senhora ir para dentro de casa, o tempo está se aprontando, virá um grande temporal. O mar está agitado. A senhora não tem mais idade para se molhar, é preciso cuidar com o resfriado.

Era a vizinha, Lourdes, que nos últimos tempos vinha todos os dias cuidar de Paty, pois sofria de hipertensão e às vezes caia sozinha. Muitas vezes fora socorrida desmaiada perto dos rochedos.

- Fique tranquila minha amiga, hoje estou mais forte. Qualquer coisa, irei para dentro de casa. – tranquilizou Paty.

- O que a Senhora está fazendo ai, parada olhando para o mar? Até parece que está conversando com alguém.

- Estou me lembrando do passado, conversando com os fantasmas, somente isso.

- Que fantasmas? – perguntou Lurdes.

- Você não os conhece. Não adianta explicar. – respondeu Paty.

- Está bem, mas não demore. – acrescentou Lourdes.

Lourdes era uma boa pessoa, surgiu de repente na vida de Paty. Ela também teve uma existência parecida com a da sua amiga, mas nunca revelou nada a ninguém. Em alguns momentos, Lourdes se recolhia para conversar com o tempo, em outras ocasiões chorava de saudade ou tristeza.

Mesmo com a ponderação de Lourdes, Paty voltou para assistir ao filme sobre a sua vida.
O pensamento foi lá atrás novamente, no início de tudo. Quando adolescente, começou a ver o mundo diferente e surgiu a oportunidade de sair da cidade para viver coisas além do portão da sua casa. Seus pais foram radicalmente contra. Mesmo sendo pessoas simples, não queriam que a adorada filha fosse morar distante do local onde nasceu, pois a sua maior alegria foi quando ela veio ao mundo.
Nesse momento conheceu um homem mais velho, charmoso e aparentemente rico. Ainda permanecia vivo na memória o dia em que o encontrou pela primeira vez, aquele que seria o seu eterno amor. Ou, aquele que mostraria para ela o outro lado da vida, o lado da noite, do dinheiro fácil, do consumo de todas as bebidas e também da tristeza.

Estava saindo do colégio com as amigas, quando Coiote parou o lindo carro e a convidou para dar uma volta e depois a deixaria em casa.

- Você ai, menina dos olhos verdes, quer uma carona?

Ela não pensou duas vezes para aceitar o convite daquele homem, mesmo sendo uma pessoa estranha.

- Aceito sim, nunca andei de carro, hoje será a primeira vez. – respondeu Paty, alegremente, sem imaginar que estaria naquele momento entrando numa longa estrada de orgias e bebidas.

Depois de alguns momentos dentro do carro, parecia que já o conhecia, tamanha foi à simpatia que os uniu. Estava profundamente feliz.

Andou pela primeira vez num belo carro e ainda acompanhada de um homem bonito e cheiroso era algo sensacional para a ingênua flor. A magia tomou conta dela, e o encanto fez com que seus olhos brilhassem perdidamente.

Eles se apaixonaram perdidamente, tudo aconteceu num passe de mágica. Daquele dia em diante, Coiote passou a buscá-la no colégio todos os finais de tarde. Não demorou muito e o convite para passar uma noite inteira aconteceu.

Nunca tinha ficado com alguém de sua idade, e muito menos, com um homem mais velho. Dali em diante, se encontravam todos os finais de semana num motel de Chapecó. Beijos e abraços estavam se tornando frequentes. Não sabia o que era fazer amor, sentir prazer e dar prazer a um homem.

No início, mesmo num motel, Coiote teve paciência com ela. Não foi além de umas caricias. Com ele tudo era novidade, pois foi com esse homem que conheceu o que era prazer. A primeira vez que se sentiu mulher, sendo acariciada e penetrada por um homem, entendeu que tudo seria diferente a partir daquele dia. Estava atravessando a ponte da vida de uma mulher.

Paty era uma linda menina, corpo pequeno e olhos verdes. Tinha coxas grossas, bumbum avantajado, cabelo loiro, seios grandes e lábios carnudos. Seu rosto parecia o de um anjo, vindo das estrelas para ser amado na terra. Mas somente a um poderia dar o coração e o amor. A sua magia escultural enfeitiçava qualquer homem por onde passava. Filha de pais pobres, agricultores, e de origem italiana, não conhecia o que era viver no conforto. Por isso que o novo mundo para ela seria algo deslumbrante. Um mundo cheio de oportunidades estava se abrindo a essa bela menina de olhos verdes. Uma princesa coberta de beleza e de uma formosura que fazia com que as pessoas ficassem tontas pela sua realeza.

Já Coiote era um homem do mundo e boêmio por natureza. Tinha que dar uma guinada na vida, talvez em agradecimento por tê-la tirado do fundo do quintal da sua tenra existência. Entendeu perfeitamente o papel que ambos desempenhariam nos próximos passos que iriam dar.

Paty não iria tirar nada dele, viveriam juntos uma nova e brilhante paixão, sem medo da felicidade. Curtir intensamente os momentos, mesmo sabendo que não seriam eternos. Não queria nada em troca, queria apenas ser uma mulher diferente daquelas que ele teve ao longo de meio século de vida, tanto que nunca lhe prometera algo que não pudesse cumprir. Também imaginava que o dia em que a relação terminasse, os sentimentos iriam permanecer guardados a sete chaves, para serem reabertos em outro tempo, quem sabe em outra época.

Ele tinha 50 anos bem vividos, viúvo duas vezes, estava à procura de mais uma emoção que agradasse o seu coração. Percorreu várias paixões de uns cem números de mulheres, não iria facilmente se apaixonar por mais uma mulher. Como qualquer homem de sua idade, namorar uma menina tão nova era algo que deixava qualquer um feliz da vida. Mas essa, imaginava, mudaria a sua vida, daria novo norte no seu horizonte. Ela iria mostrar a essência da paixão e das aventuras amorosas.

Porque a idade nem sempre indicava maturidade emocional e sentimental. Todas as mulheres com quem teve relacionamento correram atrás dele. Paty, não. A química de seus corpos os atraia, pois a partir do momento em que a conheceu, o coração balançou e nunca mais bateu da mesma forma. Tinha consciência de que a presença dela na sua vida, não duraria muito, mas seria profundamente intenso e essencialmente embriagante.

Não perdeu tempo. Fez de tudo para ela e por ela viveu o resto dos dias, mesmo distante e sabendo que não estaria sempre nos seus braços. Viu que era uma mulher diferente. Seus olhos eram infinitos. Seus beijos davam uma gostosa tonturinha e uma leve brisa que caia nos seus rostos. Ela, com amor, discrição e elegância, raro em mulheres de sua idade, indicou-lhe a melhor forma e o jeito de se vestir. Falou que para um homem de 50 anos, algumas coisas precisavam ser valorizadas e cuidadas. Nenhuma mulher que se apaixonou por ele, ao longo da vida, conseguiu sensibilizar a sua trajetória. Mesmo sendo do interior, sem muita cultura, sem saber o que era a cidade grande, a ingênua flor iluminou sua vida, deu sentido a sua auto-estima que estava em baixa.

Há mulheres que nascem para fazer a diferença na existência de um homem. Para Coiote, Paty foi determinante para a sua trajetória. Depois que conheceu aquela menina, afirmava que a vida tinha alcançado o êxtase. Chegou a agradecer aos céus por tê-la encontrado e as condições que se apresentaram para ambos.

Os dois anos que passaram juntos foram eternos enquanto duraram, em todos os aspectos. Viajaram e conheceram diversos lugares. Cada passo que davam, sabiam que não voltariam àquele lugar. Para Coiote, pela idade, era uma despedida de sua caminhada. Mas, para Paty, era o início de uma deliciosa experiência amorosa. Nada mais mágico e inebriante do que viver alguns momentos com alguém que só faz bem ao ego. Esses instantes são como uma música tocada ao por do sol, adentrando nosso ser, deixando nossos corpos em total harmonia com o universo. Foi assim que Paty e Coiote experimentaram essa charmosa experiência.

Mas tudo na vida tem um tempo. Temos um tempo para plantar e um tempo para colher. Por mais que nosso coração não queira, precisamos fazer a fila andar. Por mais que sintamos saudades, têm coisas na vida que é preciso fazer acontecer. Assim, o silencioso distanciamento, sem despedida e choros, se instalou no coração dos tristes amantes. Cada um seguiu seu destino sem deixar endereço. O último telefonema aconteceu numa manhã de quarta-feira de cinzas. Ele estava viajando e aproveitou a distância para desejar felicidades à Paty.

Ela não entendeu nada, mas com o decorrer dos dias, ficou claro que aquele telefonema era a despedida. Chorou copiosamente por muito tempo. O coração apertou, sentiu-se desprotegida. Coiote lhe ensinou coisas que nunca mais iria esquecer. Os ensinamentos foram fundamentais para o crescimento e para os passos futuros. Mas a vida precisava andar. Mesmo machucada, como uma andorinha, continuou seguindo o destino. Descobriu a balada e seus componentes. Não seria difícil recomeçar.

Assim, Paty iniciou verdadeiramente sua vida de mulher de todos e, ao mesmo tempo, de ninguém. Nunca mais se deixou apaixonar por nenhum homem por mais bonito e rico que fosse. Dormiu com todos, mas não amou ninguém. Fingiu orgasmos para fisgar quem lhe desse algo em troca. Os verdadeiros orgasmos sempre foram com o seu amado Coiote e mais ninguém!

Coiote mostrou-lhe que a sociedade era hipócrita e não merecia respeito. Não casou porque não queria ter filhos. A Terra era um lugar de sofrimento e não iria trazer ao mundo uma pequena criatura para participar das orgias mundanas. Todos esses pensamentos povoavam a vida de Paty. Fez deles um guia e jamais se arrependeu por ter agido dessa forma.

Para cada noite com um homem era um valor. Cobrou até mesmo um beijo e fez orgias com inúmeros parceiros. Nunca se esqueceu de exigir que os homens usassem preservativos, assim estaria livre de doenças e filhos. Agiu friamente, mesmo recebendo lindas declarações de amor.

Um grande banqueiro jurou amor por ela, como não foi correspondido, se jogou do 15° andar do prédio onde morava. Queria ter Paty vivendo com ele o resto da vida, e como não conseguiu, preferiu casar com a morte a viver distante da mulher que enfeitiçou os seus dias. Também teve um comandante de avião comercial que largou tudo e foi atrás dela. Até recebeu certo tratamento, mas logo sentiu o abandono. Não suportando a saudade, virou andarilho e alcoólatra, viveu o resto dos dias chamando por ela.

Assim se tornou a ingênua flor: uma mulher magoada com o destino, triste com os céus e raivosa com a vida. Os homens que ousaram se apaixonar por ela tiveram um fim trágico.

Cada final de noite, sozinha numa cama qualquer, Paty, quieta, solitária, com o corpo suado e cansado de tanto sexo, chorava tristemente. Pensava: por onde estaria o amado Coiote? Nunca mais o viu. Suas lágrimas molhavam o travesseiro, mesmo assim esperava encontrá-lo um dia. Somente sabia da existência dele através dos livros que ele publicava.
Numa noite chuvosa e fria, após um programa, sentou na sala para assistir à televisão e para a sua alegria, viu o seu amor sendo entrevistado. A repórter, das varias perguntas que fazia, uma deixou Coiote com lágrimas nos olhos: se ele tinha amado alguma mulher de verdade. A resposta dele foi clara:

-“Eu já amei sim. Faz muito tempo. Existe uma mulher que ainda hoje mora dentro do meu coração, todos os dias me lembro dela. A sua sombra me acompanha por todos os recantos. Um dia irei reencontrá-la, nem que seja longe, muito longe, mas quero revê-la. É a minha doce menina Paty”. Depois dessa declaração através dos meios de comunicação, ela foi dormir e tentar procurá-lo nos sonhos.

Dois dias depois da entrevista, em alta velocidade, numa manhã de domingo, Coiote com seu carro preto e solitário, viajando de São Miguel do Oeste a Florianópolis, chocou-se violentamente contra um paredão de pedra na BR-282. O carro pegou fogo na hora e quando a Policia Rodoviária chegou, não restava mais nada, somente cinzas espalhadas pelo vento e uma mancha escura no asfalto.

Assim terminava a vida de um homem que nasceu para degustar as coisas boas. Ele sempre dizia que nunca iria morrer velho, que um dia iria ao encontro da morte de alguma forma. Tinha uma relação estranha com a morte, com o jeito de morrer. Coiote achava que era melhor morrer inesperadamente do que sofrer com uma doença grave no fundo de uma cama. Já tinha vivido meio século e aproveitado todos os prazeres que a vida lhe ofereceu. Nunca trabalhou, recebeu a riqueza dos pais. Também sempre foi uma pessoa generosa, ajudou a quem podia.

Na ocasião, os patrulheiros que atenderam o ocorrido não compreenderam o motivo do acidente. Era um dia calmo, sem chuva e ensolarado. A estrada estava boa e convidativa para viajar. Nenhuma marca de pneu ficou no asfalto. Como veio em alta velocidade chocou-se direto contra o paredão. Até parecia alguém sem destino à procura de uma morte sem dor.

O sol já estava se pondo e a noite estava batendo na porta do mundo. A tarde já tinha terminado sua missão de esquentar seus habitantes. Para o outono, aquele dia era um dos mais belos já produzidos pela natureza. Paty continuava sentada na varanda de sua casa assistindo ao filme de sua pregressa vida. Essa parte fazia com ela levitasse até a porta do céu, pois fazia com que lembrasse de Coiote, que a essas alturas já devia estar vivendo muito longe, quem sabe viajando entre as estrelas, ou em algum lugar onde o amor descansa. Não podia continuar vendo o passado daquela forma. Precisava olhar para frente e se preparar para a viagem que a levaria até junto do seu amado. Toda tarde era a mesma coisa: assistia ao filme no qual era a protagonista.

Ainda se recorda da frase que ele disse quando se encontraram pela primeira vez:
- ”Minha linda. Nós temos uma história a ser construída. Seremos amigos da noite, da boemia e vamos morrer com ela. A nossa afinidade vem de muito longe”.

Com os passar dos anos, entendeu o que ele queria dizer. Naquele momento, o seu coração começou a ficar fraco. A música que se aproximava ficou mais forte e a emoção começou a dilacerar seu peito. Viu um vulto que se aproximava com uma rosa amarela na mão. Começou a levitar e uma luz acariciou seu coração. As lágrimas escorreram no rosto. Era Coiote que estava chegando para levá-la. Cumpriu sua promessa, aliás, ele nunca faltou com a palavra. Sorrindo e com os braços abertos, acalentou Paty demoradamente e disse:

- Minha bela princesa de olhos verdes. Estou aqui para levá-la para viver comigo nas estrelas. Eu construí uma linda casa na Grande Estrela do Norte.

- Meu grande amor! Eu nunca me esqueci de você! Contei os dias para que esse momento chegasse. Agora estamos livres deste mundo triste. Somos como pássaros, vamos voar por todos os lugares.

Agora eles estavam juntos na outra margem do oceano. Souberam viver uma existência com sofrimentos, fracassos, paixão, luxúria e muito sexo, como dois errantes, mas seguiram seus destinos. Cada um cumpriu o seu papel. A idade não os separou, apenas fez com que cada um vivesse seu tempo, sem esquecer quem era o verdadeiro amor.

O temporal não veio e tudo se acalmou. O filme da vida da ingênua flor se acabou e a noite já se fazia presente na vila em frente ao mar. Lourdes, preocupada com Paty, foi até a sua casa e, chegando lá percebeu que ela permanecia sentada na varanda da casa. Os olhos estavam ainda abertos, voltados para o infinito e muito feliz. Chegou bem perto e tocou-lhe no braço. Para a sua surpresa, a pele estava gelada e parecia que a morte se fazia presente. Agarrou carinhosamente a grande amiga nos braços, e chorou silenciosamente. Sem falar nada para ninguém organizou o enterro.

Enterrou Paty próximo de uma grande pedra, na margem esquerda da praia e foi embora daquela vila. Voltou à cidade para avisar aos parentes da ingênua flor que havia cumprido a sua missão cuidando dela nos últimos dias de vida.

domingo, 17 de julho de 2011

O Troco

Naquela noite eu pensei que o mundo iria acabar. Tudo estava caminhando rapidamente para o fim. Não queria que fosse daquela maneira, mas o destino escreveu e tinha que ser cumprido. Olhei para todos os lados para ver se enxergava alguém, tudo em vão, estava sozinho à espera do final dos tempos. Lutei por muito tempo para que as coisas terminassem diferentes.
Além da escuridão o frio era intenso. Ninguém caminhava pela rua. Todos estavam dentro de suas casas e parece que não queriam participar da minha história. Fiquei sozinho envolto em uma grande tragédia. Naquelas alturas não poderia fugir, simplesmente era obrigado a aguardar o desfecho. O vento assoviava levantando as folhas secas espalhadas pelo chão da rua. No final da avenida, era possível ouvir os gritos de Flávia.
Na semana passada, ainda tentei de todas as formas, mostrar à Flávia que os nossos encontros iriam acabar mal. Ela não me escutou. Queria continuar sendo a minha amante.
- Nós não podemos continuar. Se ele descobrir será o nosso fim. Roberto é violento e não vai deixar barata a tua traição. – Expliquei.
- Não importa meu querido. Por muito tempo sonho dar o troco. Quero que ele sinta a mesma dor que senti quando descobri que ele era amante da minha melhor amiga.
E continuou:
- Ele é um homem que não me merece. Sempre foi de uma tremenda desconsideração. Posso até ser morta por ele, mas que darei o troco, não tenha dúvidas.
Flávia era uma bela mulher. Por um grande erro do destino acabou casando com Roberto, policial que nunca soube o significado da palavra carinho. Muito menos respeitar uma mulher. Conheceram-se num final de semana e dali seis meses estavam casados. No segundo mês, Flávia já estava arrependida de estar vivendo com o policial, mas era tarde. Como tudo na vida, o arrependimento vem a galope.
Roberto não tinha um bom salário e em consequência disso, considerava-se menor que Flávia. A maioria das contas era paga por ela e assim as brigas tornaram-se frequentes. Flávia formou-se em economia e trabalhava numa multinacional de componentes eletrônicos. Na realidade, pouca coisa eles possuíam em comum.
Nos finais de semana, quando Roberto não estava de plantão na delegacia, para tentar melhorar a relação, o casal frequentava um barzinho, mas não adiantava, tudo era motivo de briga. Foi numa dessas saídas que conheci Flávia. Ela estava sentada numa mesa bem na minha frente. Não tinha como não observá-la. Além de ser uma linda mulher, possuía lindos olhos azuis. Trocamos vários olhares durante a noite. No final, consegui passar para ela o número do meu celular através do garçom, amigo meu de longa data. Ele aproveitou a ida dela ao banheiro e entregou-lhe o papel.
Os nossos encontros tornaram-se semanais. Flávia demonstrava ser uma mulher triste, talvez pela vida que estava levando com o policial. Depois das nossas relações amorosas ela reclamava da vida, do grande erro que cometeu em ter casado. Dizia que sua situação seria bem melhor sendo separada do que viver com um homem que não amava. Eu não dizia nada, apenas escutava, era um bom ouvinte. Até porque tinha os meus problemas amorosos e não iria dividir com ninguém. Mesmo assim entendia as razões de Flávia, não é fácil viver com que não se ama e que não se sente prazer.
Enquanto os gritos de Flávia eram jogados ao vento da noite, pensei em ir socorrê-la. Não estava suportando mais ouvir a minha amante ser torturada. Adquiri coragem e caminhei até a casa do casal. Chegando lá, os gritos eram mais estridentes. Abri a porta com força, mas para minha surpresa, vi algo que jamais esquecerei. Flávia estava nua e sentada sobre o corpo todo ensanguentado do policial. Ela chorava, gritava como uma louca, e ao ver-me, disse:
- Querido, estou livre para sempre, matei quem estava estragando a minha vida. A partir de hoje serei tua por toda a vida. Coloquei calmante na bebida dele, aproveitei que estava dormindo, enfiei uma faca no coração. Morreu como um passarinho. Esse filho da puta nunca mais vai gritar comigo.
- Você está frita e será presa! Não deveria ter feito isso! A tua vida está estragada. – Falei, tentando lhe mostrar o erro cometido.
- Não importa meu querido. Nós vamos fugir para o Paraguai. Está tudo acertado.
- Eu não vou fugir com você. Não tenho nada a ver com o que aconteceu. – Respondi.
- Agora é tarde! Você vai sim! Não tente escapar! – Afirmou com olhar de ameaça.
Tentei correr, mas não consegui, senti uma forte dor nas costas. Ela enfiou uma faca em mim. Cai e não vi mais nada.
Alguns meses após o ocorrido, estou recuperado dos ferimentos. Flávia foi internada num hospital para tratamento psiquiátrico e de lá nunca mais vai sair.

sábado, 16 de julho de 2011

Sou Espírito da Treva

Sou o espírito da treva,
A noite me tráz e leva;
Moro à beira irreal da vida,
Sua onda indefinida

Refresca-me a alma de espuma...
Prá além do mar há bruma...

E prá aquem?
Há cousa ou fim?
Nunca olhei para trás de mim...

Fernando Pessoa

sábado, 9 de julho de 2011

Despertar é Preciso

Vladimir Maiakovski

Na primeira noite eles aproximam-se e colhem uma flor do nosso jardim
e não dissemos nada.

Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores, matam o nosso cão,
e não dizemos nada.

Até que um dia o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a lua
e, conhecendo o nosso medo
arranca-nos a voz da garganta.

E porque não dissemos nada
Já não podemos dizer nada.

domingo, 3 de julho de 2011

Amor É Um Fogo Que Arde Sem Se Ver

Luís de Camões

Amor é um fogo que arde sem se ver
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente,
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer,
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente,
É um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence o vencedor;
É ter, com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode ser favor
nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo amor?

NÃO VOU ADORMECER SEM DEGUSTAR OS MEUS SONHOS

Ninguém prende um pensamento. Ninguém aprisiona uma alma ou um coração. O amor é livre e o gostar caminha junto com a liberdade. O desejo ...