domingo, 31 de julho de 2011

Enfermeira

Estou envolvido numa escuridão total. Há duas noites e dois dias que não saio do meu quarto. Fumo e bebo sem parar, já escrevi várias histórias, todas curtas e intensas. A minha mente não para de viajar, por algum momento chego a pensar que estou perdendo o juízo. Isso acontece toda vez que me lembro da minha última internação. Sofri muito na clínica. Os médicos diagnosticaram que sofro de uma grave doença mental. Eu não acredito neles, talvez eu seja vitima da sociedade que cobra tudo, até mesmo o modo de pensar. Se você é diferente, torna-se alguém perigoso e precisa de tratamento. Sendo assim, é escrevendo que consigo me libertar. É bebendo e fumando que consigo livrar os meus pensamentos sobre a dor, a perseguição e a morte.
Quando o dia começou a nascer, abri a janela do meu quarto para deixar o vento da manhã adentrar e assim limpar a intensa fumaça que tomou conta dos meus aposentos. Nesse momento, alguém bateu a minha porta. Abri, e uma linda moça, vizinha do andar de cima, diz:
- Bom dia, escritor! Há dois dias que bato a sua porta e você não atende.
- Bom dia. O que você quer? Algum problema? – Perguntei secamente.
- Desculpe, mas fiquei preocupada com você. – Respondeu - desconcertada com as minhas perguntas.
- Não se preocupe comigo. Não convido você para entrar porque o meu apartamento está totalmente desarrumado. – Acrescentei.
- Não precisa. Agora estou tranquila. Está tudo bem com você. Mas quando sobrar um tempo, gostaria de conversar um pouco. Nunca tive oportunidade de conhecer um escritor famoso. Só conheço você pelos livros e artigos publicados em jornais. – Revelou, tentando uma aproximação.
- Está bem, numa hora dessas conversaremos. Agora, se você me der licença, preciso tomar um banho e comer alguma coisa, estou faminto.
- Fique à vontade, já estou indo embora. Qualquer coisa que precisar pode me chamar. O meu nome é Marlene, moro no apartamento 301.
- Obrigado Marlene. O meu nome você já sabe.
- Sei sim. É o famoso escritor Flamingo.
A conversa com a minha vizinha até que foi boa, mas me deixou preocupado, estava querendo entrar na minha casa sem ser devidamente convidada. De certa maneira ajudou a quebrar o silêncio reinante. No momento em que a porta fechou, voltei para o meu mundo. Um mundo estranho, que somente eu tenho acesso e mais ninguém, que foi construído aos poucos. Essa construção teve início lá na minha infância. Os meus pais se drogavam na minha frente. Para fugir da situação, eu me refugiava no meu quarto. Só saía quando eles adormeciam, ou saíam para rua à procura de mais droga. Fui crescendo vendo as pessoas que eu amava se destruindo. Até que um dia, a morte acabou levando os dois. A alternativa foi viver com a minha avó, que também tinha problemas com bebida e não demorou muito a falecer.
Aos dezoitos anos de idade, vivendo sozinho e sem família, iniciei a minha carreira de escritor. Os meus primeiros escritos se basearam na minha experiência de vida. Relatei os acontecimentos amorosos dos meus pais e o alcoolismo da minha avó. Depois que eles morreram, conheci a vida noturna. A solidão continuou sendo a minha companheira.
Por sorte herdei uma pensão da minha avó, e com isso não foi necessário trabalhar. Em seguida comecei a receber recursos financeiros pela venda de artigos publicados em jornais. Toda a experiência dramática da minha família me contaminou profundamente. Herdei o vício da bebida e ainda loucura do meu avô. Nas vezes que fui internado para tratamento do alcoolismo, foi porque o meu editor teve a coragem de me socorrer, chamando um médico.
Durante trinta anos vivi o meu mundo. Escritor de talento para uns e louco para a sociedade. Na minha cabeça eu tinha a certeza de que não sairia jamais da situação em que me encontrava. Os meus relacionamentos amorosos sempre foram rápidos e sem compromissos. A maioria deles era com prostitutas. As mulheres foram passageiras na minha vida, talvez tivessem medo de mim. Tudo era esquisito e o silêncio se fazia presente. Qualquer um que tentasse se aproximar, logo era descartado, muitas vezes de forma violenta. Sendo assim, nunca foi possível manter qualquer relacionamento.
Passaram-se duas semanas da conversa que mantive com Marlene. Eu já ia até me esquecendo dela. Certo dia, ao sair do meu apartamento, dei de cara com a vizinha do 301. Tentei me esquivar, mas não teve jeito. Ela colocou-se a minha frente, dizendo:
- Hoje você não escapa! Quero muito conversar com o escritor que tanto admiro.
- Pode ser outro dia? – Perguntei, tentando despistar.
- Não! Tem que ser hoje! – Respondeu taxativamente.
- Está bem, entre então. Não repare a sujeira da minha casa. A faxineira só vem na próxima semana.
- Não vim aqui para reparar nada, somente trocar algumas palavras com uma pessoa maravilhosa e repleta de talentos. – Disse.
Ficamos conversando a noite inteira. Ela bebeu comigo. Até trocamos olhares sensuais em alguns instantes. Mas ficamos nisso. Contou-me algumas passagens da sua vida, mas quem mais falou fui eu. Pela primeira vez na vida, consegui externar a imensa carga emocional represada ao longo do tempo. Marlene, com sua maneira autoritária, outras vezes, meiga, conseguiu abrir a porta do meu coração. Parece que ela veio cuidar das minhas feridas. Chegava a ser igual a uma enfermeira, com tanto zelo por mim. Em momento algum me criticou. No final da noite, quando achei que tinha ouvido tudo dela, na despedida disse:
- Eu descobri a senha do teu coração. Agora serei a tua dona. Só vai fazer aquilo que eu mandar. No fundo você é uma pessoa carente e frágil. Mas, fique tranquilo, não falarei nada para ninguém das coisas que conversamos. Outro dia, quem sabe, poderemos continuar a nossa conversa.
Senti-me nu na frente dela. Aquela mulher, sem mais nem menos, entrou na minha casa, descobriu os meus podres e ainda disse que era a minha dona e que eu era fraco. Eu precisava fazer alguma coisa. Não disse nada, somente agi.
Depois do serviço feito, voltei para a mesa na biblioteca e escrevi uma história sobre a vida de uma enfermeira intrometida que foi estrangulada e seu corpo jogado numa lixeira no condomínio onde residia.

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