segunda-feira, 14 de julho de 2014

PAIXÕES DE HELENA

Nos confins do pensamento de Helena tudo tinha sentido, exceto os últimos acontecimentos, que aconteceram sem dar tempo para que ela pensasse numa saída honrosa. Até então tudo parecia tranquilo. Até mesmo o tempo estava contribuindo, o sol brilhava depois de duas semanas de chuva e a noite brilhava com a presença da lua cheia e as estrelas cintilavam no firmamento. Há momentos em que a vida é igual a uma longa estrada, sem curva perigosa. Quando acostuma-se com a calma, essa mesma estrada, antes tranquila torna-se traiçoeira. Foi um grande temporal e desmontou as emoções de alegrias, transformando-se em decepção e lágrimas. Quando se pensa que a felicidade existe, ela sinaliza que não. As duas paixões de sua vida viraram dois tormentos. A imagem a sua frente virou um tango triste, uma melodia que cortava o coração. Estavam no chão, as paixões que lhe deram momentos inesquecíveis. Dançarina de boate, durante a noite ela procurava viver a vida de acordo com o momento. Mas com os acontecimentos, a sua vida se transformou num profundo desastre sentimental. Desde os 15 anos, Helena trabalhava de noite e dormia de dia. Aprendeu a dançar tango com Camorra, dançarino argentino, em Buenos Aires. Foi ele que ensinou a arte da dança e da sensualidade, nos salões da capital argentina. Nesse período, foi amante dele e de seus amigos. Isso porque ela era dividida com os demais dançarinos de tango. Sempre depois das apresentações nos teatros, Helena e Camarro iam beber nos cabarés e depois acabavam a noite fazendo amor de todas as formas. Quando a rotina ficava muito tediosa, eles traziam o professor Marco Antônio para brincar de sexo a três. Helena, linda, magra, morena, olhos pretos, lábios carnudos, sabia os passos do tango, jamais errava um passo. Já Camarro, quando bebia demais, os passos se misturavam, dando a impressão que ia cair. Mas ela, conseguia fazer do erro um acerto com suas coxas sendo expostas aos olhos dos clientes. Muitos esperavam por esse momento, porque não era somente as lindas pernas que ela exibia e sim as partes intimas, pois não gostava de usar calcinha e nos giros dos pés, ao som de “Por Una Cabeza”, de Carlos Gardel, os clientes iam à loucura. Isso também foi ensinado por Camarro, um voyeur e conhecedor dos olhares sensuais da plateia dos cabarés. Buenos Aires, 1930. Ano do Golpe de Estado, conhecido também como Revolução de Setembro, que envolveu a derrubada de Hipólito Yrigoyen. Esse movimento foi conduzido por José Féliz Uriburu e Juan Domingos Perón. Enquanto o mundo político fervia, o tango era o remédio para as angústias e alegrias do povo argentino. Nas ruas e avenidas largas da capital argentina, com seus cafés, cabarés e alguns dos teatros mais importantes de Buenos Aires, Helena era conhecida e admirada por todos. O bairro San Telmo, um dos mais antigos e preservados de Buenos Aires, possuía uma atmosfera boêmia e era o local escolhido por artistas. Era nesse bairro que Helena, Camarro e Marco Antônio, viviam. Tudo fazia parte de um mesmo mundo. Enquanto Uriburu e Perón articulavam uma nova Argentina, o tango mostrava ao mundo a beleza dos passos e a sutileza dos corpos em movimento. Vários generais foram amantes de Helena, a mais linda dançarina portenha. Ela fazia da noite o maior acontecimento da sua vida e de quem estivesse nos seus braços. A magia contaminava o mundo intelectual de San Telmo e nada era mais sublime que ver um casal dançar tango, enquanto o som quebrava a suavidade e o silêncio das ruas. Quando a força do tango avançava nos corações e mentes, vários artistas iam para as ruas de San Telmo para transformar ruelas em grandes salões de apresentações. Todos eram contaminados pelo veneno transcendental da música e dos passos que os dançarinos, embriagados, mostravam. Cada passo obedecia o olhar das pessoas que procuravam penetrar na essência da musicalidade do tango. Ali, Helena viu a grandeza e ao mesmo tempo a beleza de se deixar envolver pela música que fazia do coração uma ponte para a morte. Entre um gole de vinho e o requebrado dos corpos, muitos corações deixaram de bater para voltar a reviver nos porões do além. Marco Antônio, em momentos de êxtase musical, costumava dizer que “morrer dançando tango seria um presente de Deus aos dançarinos...” Dentro desse contexto, de pura adrenalina existencial, Helena se entregava totalmente à arte da dança dos deuses, porque assim era chamado o tango nas décadas de 20,30 e 40, na Argentina. A emoção era tão forte que até mesmo na hora de fazer amor, os amantes sentiam uma profunda emoção em ouvir o som das cordas de um violão, entre um orgasmo e outro, nas madrugadas sem fim. O tango começou a ser tocado e cantado mundo afora. Os ricos europeus vinham passar as férias em Buenos Aires, para fazer parte do mundo mágico do tango. Tudo conspirava para que Helena, dançarina dos grandes teatros e cabarés, fosse a mulher dos sonhos de todo homem com poder e riqueza. Com 26 anos de idade, ela sabia que tinha um tempo, um prazo de validade. Logo as marcas do tempo iriam fazer dela uma velha dançarina e somente os cabarés de baixo padrão iriam lhe dar emprego ou guarida. Tudo isso martelava na sua cabeça, porque não conseguia guardar dinheiro para quando esse momento trágico da vida de todos os seres chegasse. Camarro, dançarino que nunca soube ter uma vida glamurosa, não tinha essa preocupação. No início, todos o chamavam de maricas, pois vivia dançando e rebolando pelas ruas de San Telmo.Até que um dia Marco Antônio resolveu lhe dar oportunidade, levando-o para a sua academia de dança no centro de Buenos Aires. Lá aprendeu de tudo, até como conquistar uma mulher nas noites alegres da vida dos encantados dançarinos. Marco Antônio disse-lhe, num certo momento da sua juventude: - Camarro, meu amigo e parceiro das noites, faça da tua vida uma eterna dança. Mesmo que teu coração esteja amargurado, não demonstre, ria e dance. Quando a morte bater a tua porta, não fique com medo, convide ela para dançar. Assim você irá transformar esse momento triste numa dança que até mesmo a morte se tornará tua amante. - Por que você está dizendo isso, Marco Antônio? –perguntou Camarro, sem entender nada. - Porque você precisa aprender algumas regras dos dançarinos. Relaxe e deixe o tango guiar os teus passos. Sinta o som musical penetrar no teu corpo e na tua alma. Nós somos artistas, criaturas especiais, seres que a divindade cuida e abençoa. Nascemos para alegrar as pessoas e fazer da dança um momento sublime, mesmo que por dentro estejamos estraçalhados. As palavras do Marco Antônio ficaram gravadas para sempre na mente de Camarro. Quando Helena ficava triste e sem vontade de dançar, ele repetia o que tinha ouvido de Marco Antônio. Helena, por mais que estivesse envolvida com os dois, nunca os conheceu profundamente. Marco Antonio, mais velho e mais rodado que Camarro, nunca foi casado, simplesmente viveu com a dança e fez do tango uma estrada sem endereço fixo. Ela jamais iria entender o que se passava com os seus dois amantes. Muitas noites, quando o frio de Buenos Aires tomava conta das ruelas de San Telmo, Marco Antonio e Camarro desapareciam uma semana inteira, para reaparecerem sem dar nenhuma explicação. Pareciam cansados, mas com forte brilho nos olhos... Helena, mulher e dançarina de tango, tinha pelos dois um imenso amor que beirava a loucura. Exigia que fosse possuída pelos dois nos camarins dos teatros e nos quartos de cabarés. Ela dizia que só poderia participar das apresentações se fosse tocada intensamente por eles. Como mulher, sabia que os dois faziam dela a deusa dos desejos carnais. Em julho de 1932, numa sexta-feria fria, perto da meia-noite, no principal teatro de San Telmo, cinco generais do novo sistema, expoentes da Revolução de Setembro, assistiam sem piscar os olhos, a dança onde Helena sentiu pela primeira vez o seu corpo tremer ao perceber que tinha chegado ao orgasmo ao ver que eles estavam observando as suas coxas sendo acariciadas num requebrado frenético de Camarro. Depois dessa apresentação, tanto ela quanto Camarro, tornaram-se convidados especiais dos militares nas orgias dos quartéis. Ela virou a queridinha do poder militar. Por mais forte que seja uma emoção, por mais longa que seja uma noite de pura magia sensual, tudo passa. Foi assim que aconteceu. Ao chegar no apartamento na praça de San Telmo, Helena viu um grande movimento. Aproximou-se e percebeu que alguma coisa tinha acontecido no seu prédio. Para sua surpresa, as pessoas entravam e saíam do apartamento onde morava. Foi abrindo passagem entre curiosos e, no quarto, dois corpos estendidos esperavam para ser levados para o IML. Na sala, um Senhor, com uma arma na mão, chorava copiosamente. Ela perguntou: - O que se passa? - Eu matei os dois. Fui amante do Marco Antonio durante muitos anos. Ele me trocou por esse rapaz. Agora acabou tudo. – disse - e abaixou a cabeça, continuando a chorar. Helena ouviu o que jamais gostaria de ter ouvido na vida. Nunca passou por sua cabeça que os seus dois amores eram maricas. No decorrer dos dias seguintes algumas imagens vieram a sua mente. Começou a entender o passado dos dois. Ela ainda tem no pensamento uma frase dita por Marco Antonio para Camarro numa noite de 1929, “me gusta tomar tequila blanco...soy un hombre que mora nu corazón de la tango. Tu corazón tiene gusto a miel”. Hoje, Helena consegue entender que Marco Antônio estava se declarando a Camarro. Ela amava dois hombres e não dois maricones. O destino estava sendo cruel demais com Helena. Esses acontecimentos fizeram dela uma outra mulher. Abandonou o tango, e a dança morreu no seu coração. Largou San Telmo e Buenos Aires para sempre. Foi morar numa cidadezinha da Patagônia. Quando o frio chegava, velha e cansada, Helena olhava para as fotos de Camarro e Marco Antônio, tentando reviver os momentos que passaram juntos nas noites de tango, mas não adiantava, tudo tinha terminado. Esperou o fim chegar e, como toda dançarina, fez da morte uma dança, onde o coração para de bater de forma lenta e com glamuor.

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