sábado, 19 de novembro de 2011

Imersão de Corpo e Alma na Boemia - Por Celso Martins*

Num primeiro momento Carlos se desgruda de Miguel e de Torres e os observa. Depois é a vez de Miguel se deslocar do corpo original e pairar sobre Carlos e Torres. Temos por fim um Torres projetado no infinito a perscrutar as entranhas de Carlos Miguel. Pode parecer um pouco estranho, mas é isso mesmo, sobretudo quando se trata de um triplo acerto de contas com o passado do autor, o mundano e depravado e o de resistência política e convívio familiar com amigos e colegas. É mais ou menos o que temos em “Embriagante Magia da Noite”, obra dedicada aos “amantes da noite” e “dançarinos das madrugadas sem fim”, sem faltar a “linda morena”, a “loira sensual”, as “eternas dançarinas da ‘Bodeguita”, onde aprendeu os primeiros passos. Nele se entrecruzam prostitutas, cafetões, garçons e o poeta apaixonado, munidos da “visão distorcida de uma realidade escura”, navegantes de um “rio que desce para lugar nenhum”. Todos envolvidos numa “madrugada de que não termina” e que “deveria ser infinita”. São temas delicados e de abordagem difícil, onde um pequeno resvalo nos leva a repetir preconceitos entranhados no ser humano, culturalmente construídos mas que parecem “naturais”. O autor aceitou o desafio e penetrou na torrente dos boêmios de “desatinados que enlouquecem as embriagantes noites”. Como se dizia até pouco tempo, esteve com o pé na lama. Só o pé não, quase toda a canela. Foi fundo na coisa, despiu-se do passado, esqueceu a referência, perdeu a noção, seguiu “à procura de uma nuvem escura”, tendo a noite como hospedeira, vivendo como “amante e dançarino”. O autor permaneceu pouco mais de uma década à deriva do mundo, mas não esqueceu de amarrar à cintura a cordinha que poderia usar a qualquer momento para chegar a margem. Ou seja, poeta, escritor, jornalista, exercitou as sensibilidades nos extremos do viver infinito, foi até o fundo do poço para depois voltar e nos falar do que viu, sentiu, cheirou, falou, ouviu e conferiu. Por isso não estamos frente a um acerto de contas qualquer, onde o autor procure sepultar um passado cruel, ou, melhor, ainda, jogue a poeira debaixo do tapete. Ao contrário, estamos frente a reflexões comuns a todo indivíduo, porém tratada com apurada lucidez, sem arrependimentos hipócritas, apenas uma apresentação dos saldos dos viveres, saberes e experiências. Militante comunista nos anos 1970, engajado no único partido de oposição nos tempos da ditadura civil-militar de 1964, o MDB, atuando no jornalismo e vivendo o renascer da produção cultural e do ativismo político nos anos 1980, também não logrou realizados os sonhos e utopias que nos animavam. O ato de sair pelo mundo “batendo na porta de várias paixões” foi sua forma particular de dizer não ao oportunismo e ao carreirismo que acompanharam a redemocratização. Miguel Torres se tornou então um “homem da noite”, “amante” e “companheiro” das prostitutas, um dos tantos “itinerantes no trato da paixão”, amigo dos violeiros e cantadores, aprendiz de dançarino. Pretendeu “descansar e adormecer em todas as calçadas do mundo”, falando somente “com a flor” plantada no coração. Suas reflexões indicam haver quebrado tabus, e deixado, de “queixo caído, a sociedade hipócrita”, além de abolir manuais que infestam a “imunda sociedade” e assumir um discurso pacifista: “Fazer das armas um monte de entulho”, transformando os arsenais e paióis em bibliotecas “onde todos possam ler os poemas, os romances que falem de amor” e de paixão. Em diversos momentos o “fantasma solitário” em que se transformou conversa com as “assombrações do passado”, quando foi “casado com a solidão” e “viúvo do tempo”, “viciado” nas “prostitutas que perambulam pelas ruelas da cidade”. Desta forma, entre percalços familiares e sofrimentos íntimos, pessoais, únicos e universais, que o poeta, “doce marginal das prostitutas”, virou o “cantor das emoções perdidas”. Mirando as lembranças físicas e emocionais da “Bodeguita”, um dia ele anunciou estar “indo embora para sempre”. E foi, traumatizado quem sabe com a “encrenqueira de plantão” da casa noturna. Cumprida a missão de observação e vivência, voltou para o mundo dos “normais”, carregando nos ombros os fardos de matéria-prima colhida entre os convivas notívagos como ele. Caminhou sobre o fio da navalha, capturando a emoção do risco e rompendo convenções, equilíbrio que fica patente na presente obra, meticulosamente construída, verso a verso, quase letra por letra. Sim, pois todas as palavras por ele ordenadas foram arduamente experimentadas, pesadas, avaliadas, submetidas a reflexões e críticas, resultando num raro testemunho do viver boêmio, a descontração e a libido ativa. Momento em que Carlos encontra Miguel que encontra Torres, jorrando a unidade que se chama Carlos Miguel Torres e sua obra. *Celso Martins é jornalista e historiador, autor de “Farol de Santa Marta – A esquina do Atlântico”, “Os comunas – Álvaro Ventura e o PCB catarinense”, “Os quatro cantos do Sol – Operação Barriga Verde” e “Aninha virou Anita”, entre outros.

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