sábado, 26 de novembro de 2011

Lágrimas da Noite

Sinto muito frio e fome. A noite está escura, nublada e parece que está chorando. As lágrimas molham o meu rosto. Não ouço mais nada, apenas o silêncio dizendo que é preciso ouvir o som que vem pelo meio das árvores. A floresta esta úmida e uma pequena neblina toma conta das montanhas que estão em minha volta. Os meus olhos pendem de um lado para o outro, procurando alguma explicação. As coisas estão muito quietas, até em demasia. Chega a dar medo, diferente da noite anterior, quando o barulho era intenso. Reconheço que estou perdido e não vislumbro uma saída. Provavelmente, os meus amigos já estão todos mortos. Ninguém escaparia dos militares. Eles estão mais preparados do que nós. A única coisa que nos move é a esperança e a fé num pais livre. Ao tentar me levantar, percebo que estou ferido na perna esquerda, que está envolta de sangue. Não tenho nenhuma dor. Mesmo assim, com muita dificuldade, me apoiando em árvores que estão ao meu redor, consigo dar alguns passos na direção de um riacho. Aproximo-me do rio e, para minha surpresa, vejo o corpo do companheiro Geraldo, totalmente perfurado de balas. Mais adiante, Marta, com seus lindos olhos verdes e totalmente nua, já não faz mais parte deste mundo. Além de ter sido violentamente estuprada, recebeu inúmeros golpes de facão pelo corpo. Sento numa pedra para descansar. Olho para cada um dos corpos e com eles suas histórias perambulam por minha mente. Conheci Geraldo nas grandes passeatas da USP em 1969. Era um jovem alegre e cheio de esperança. Estudava o quinto período de medicina, pretendia se formar e montar um consultório médico no interior de São Paulo. Éramos ligados ao Partido Comunista Brasileiro, mas descontentes com a orientação do Comitê Central. Enquanto a Direção Geral pregava a luta através do voto, nós queríamos derrubar a ditadura militar com o poder do fuzil. Foi num desses encontros que Geraldo apresentou Marta. Estudante de engenharia civil, ela demonstrou ser uma grande estrategista militar. Tinhas planos de como atacar as guarnições militares do exército, no interior do País. Profunda conhecedora das obras de Marx e Lenin, Marta falava de forma apaixonante como seria o nosso país governado pelos comunistas. Eu, estudante de história, procurava no passado, os ensinamentos para o futuro. No início de 1970, fomos apresentados ao Fernando, dirigente de outra organização de esquerda. O objetivo era a preparação para participarmos de um movimento armado que tinha sido instalado no Pará. Ouvimos atentamente as explicações dele, que pareceram plausíveis. Realmente, montar um movimento armado no Sul do Pará, nos colocava em posição vantajosa. Marta, como sempre, discordou de algumas posições de Fernando, mas acabou concordando. Ficou tudo acertado, no início do inverno daquele ano iríamos embarcar em direção ao município de Altamira. O sol estava quente naquele dia 3 de junho de 1970, época da copa do mundo, ocasião em que a seleção brasileira conquistara o campeonato mundial de futebol. Logo que chegamos à cidade, fomos abordados por um homem barbudo com nome de Miguel. - Boa tarde! - Boa tarde! – respondi. - Vocês devem ser “os amigos do padre”? – perguntou Miguel - Sim somos “os amigos do padre”. - Então me sigam, vou leva-los para conversar com o bispo. A senha “amigos do padre” era a indicação de que esperavam por nós. Caminhamos o resto do dia. No início da noite, Miguel bateu à porta de uma velha casa de madeira, que ficava em frente da Igreja Matriz. Entramos e fomos levados até a presença de Rosângela. - Boa noite companheiros. Sejam benvindos. Sentem-se, porque hoje a noite será longa, teremos muito que conversar. Rosângela, era a comandante da Brigada “Os Comunas”, tinha recebido treinamento militar na Albânia. Ela era loira e muito bonita. Como estudante de medicina, Rosângela, resolveu entrar no movimento armado contra o regime militar, para vingar a morte de seu pai nos porões da ditadura. Presenciou o sacrifício dele, ouvindo os gritos de dor da sua mãe sendo violentada por um major do exército. Tudo isso fez com que ela se tornasse uma pessoa dura e fria. Com ar de mulher corajosa, foi logo dizendo: - Vocês são comunistas como eu. Estão aqui para lutar contra os militares. Precisamos derrubar o regime e implantar uma sociedade livre e democrática. Não quero pessoas covardes na linha de frente. Se algum dia alguém de vocês for preso, não entreguem ninguém. Aguentem firme a tortura e, se for preciso morrer apanhando, que morram. Somos comunistas e heróis de uma grande e bela causa. O comunista convicto não lamenta o leite derramado. As palavras da companheira Rosângela calaram fundo na minha alma. Marta e Geraldo olhavam para mim e sorriam. Na medida em que ouvíamos as orientações, uma imensa força ia adentrando em nossos corações. Era contagiante e encantador escutar uma linda moça, dizer que existia um paraíso e esse paraíso seria construído por nós, e que não estava perdido, apenas esperando que o conquistasse. Já era madrugada quando Miguel lembrou à companheira Rosângela que seria necessário dar uma pausa. Assim foi feito. Fomos levados para o porão da velha casa para descansar. Durante trinta dias e trinta noites, recebemos várias explicações sobre história, geografia, filosofia, sociologia e arte militar. Tudo foi passado a limpo. O inverno tinha acabado e a primavera estava a caminho. No final de outubro, recebemos a última aula da companheira Rosângela. - Vocês estão prontos para a luta. Amanhã bem cedo, irão embarcar numa Kombi que os levará até um acampamento, na beira do Rio Tapajós. Quem vai comandar vocês é a companheira Marta. Ao amanhecer, uma Kombi vermelha estacionou na frente da velha casa de madeira e dentro dela estavam mais quatro companheiros. Eles vinham de Marabá para se juntar a nós. Viajamos durante três dias. No quarto dia, já cansados de tanto viajar por estradas de chão, chegamos ao destino combinado. Marta, agora a nossa comandante de armas, disse: - Companheiros, sou a mais baixa fisicamente, mas sou a comandante de vocês. Estamos numa guerra e quero disciplina e ordem. Descansem, que a qualquer momento vamos atacar uma guarnição do exército. A noite estava estrelada e um leve vento soprava a floresta. A casa onde ficamos pertencia a um professor de história da cidade de Marabá. Ele era simpatizante da causa e queria de todas as maneiras contribuir para a luta. Dormi do jeito que deitei na cama, passando por vários sonhos e pesadelos. Ao amanhecer, fomos acordados pela comandante, que passou as seguintes ordens: - Peguem o fuzil e a mochila, vamos efetuar o primeiro ataque a um destacamento do exército na saída da cidade. Depois desse ataque, iremos nos refugiar na floresta. Lá, montaremos o nosso acampamento. Não tivemos dificuldade no ataque. A sentinela estava dormindo e não conseguiu esboçar nenhuma reação, foi morto com um tiro certeiro, disparado por Geraldo. Em seguida, metralhamos mais três soldados que estavam bebendo na cantina. Fomos até o paiol de armas e lá carregamos várias caixas de fuzis e metralhadoras. Depois, saímos em disparada rumo à floresta. Após aquele ataque, tínhamos a certeza de que não teríamos mais sossego. O exército não daria folga. E foi isso o que aconteceu. Certo dia, quando estávamos ouvindo uma palestra sobre teoria marxista, Paulo, nosso sentinela, veio nos avisar que um comando militar do exército estava se aproximando perigosamente. Montamos uma cilada para atacar. Eles estavam bem armados e com maior número de soldados. Nas nossas contas, eram mais ou menos uns 50 homens, e nós, não mais que 15. No ataque surpresa, conseguimos matar a metade deles. Do nosso lado, cinco companheiros foram mortos. Mesmo assim conseguimos que eles fugissem e voltassem para Marabá. Depois dessa batalha, tivemos que trocar de lugar várias vezes, montar outras estratégias e ficar mais atentos. Andamos uns duzentos quilômetros pelo Rio Tapajós, até encontrar um local seguro. Marta ia à frente com Geraldo. Eu fazia o papel de subcomandante da tropa. Num determinado momento, ouvimos barulho de aviões sobrevoando a região. Construímos uma cabana com bambu e folhas de bananeira. Na primeira reunião do nosso grupo, Marta nos deu a seguinte informação: - Precisamos de mais homens para continuar a luta. Recebi informação de que irá chegar a Altamira um contingente de 18 companheiros recrutados no sul do país. Vou necessitar de um voluntário para buscar esses soldados da causa. - Eu estou à disposição, Comandante. – falou Geraldo. - Você tem certeza que pode conseguir ir e voltar com os novos guerrilheiros? – perguntou Marta. - Comandante, eu conheço bem a região, principalmente o Estado do Pará. Estudei geografia e os igarapés. A Senhora pode ficar tranquila, cumprirei a minha missão. - Não quero que ataquem nenhuma guarnição do exército. Fiquem no anonimato durante o percurso. Preciso de todos vocês para uma grande batalha no próximo inverno. A viagem do companheiro Geraldo até Altamira levou trinta dias. Durante esse tempo, treinamos táticas de guerrilha e arte da guerra. Ficamos sabendo que Marta recebeu treinamento militar durante dois anos na Rússia. Ela nos entregou um manuscrito sobre a grande marcha de Mao, assim como um livro sobre a coluna Prestes. Fiz várias anotações e comparei o momento histórico daqueles acontecimentos. Uma coisa me chamou à atenção: o povo apoiou e lutou junto com Mao, e quanto a nós, o povo não se fazia presente. Estava distante e anestesiado com as propagandas da ditadura militar. Com a chegada dos novos companheiros, foi criada uma nova coluna: “Coluna Vermelha do Norte”. Fui designado comandante da coluna, composta por 20 guerrilheiros. Marta continuou sendo a comandante geral, e Geraldo, o Chefe do Estado Maior de toda a tropa. Ficamos seis meses estudando e ouvindo diretrizes militares. Durante a noite, ouvíamos a rádio Tirana da Albânia. Esse tempo foi de extrema importância para todos nós. Os ensinamentos sobre a realidade econômica do mundo e do nosso País, a história da América Latina e o papel dos Estados Unidos. Tudo isso nos ajudou a compreender a luta que estávamos empreendendo nas matas da Amazônia. Nos finais de semana, Marta declamava poemas de Pablo Neruda, com fundo musical. Geraldo era o músico da tropa, sabia tocar violão de forma impressionante. Num desses encontros, não suportei, e falei para Marta: - Desculpe Marta, mas preciso falar uma coisa que está me atormentando há muito tempo. - Fale Camilo. - Com todo o respeito que tenho pela minha comandante de armas, preciso confessar: estou apaixonado. - É? E por quem? - Por você! Marta engoliu em seco. Olhou nos meus olhos e disse: - Camilo, escute o que eu vou te dizer: eu também tenho uma queda por você. Afinal sou mulher e tenho meus desejos. Acontece que nós não podemos e não temos o direito de deixar de lado a causa. - Revolução rima com paixão. Você não concorda? - Depende. – respondeu Marta. Conversamos muito naquele final de semana. Nada aconteceu de concreto entre nós. Com o decorrer do tempo, chegamos a trocar alguns beijinhos, e nada mais. Marta era muito rígida e conservadora. Seus olhos, seu corpo e sua voz eram o remédio para a minha vida. Já passava de dois anos que estávamos na selva. O exército brasileiro andava silencioso. Os seus guias militares e olhos noturnos, somente nos espreitavam. Para nós, o momento estava perto e com certeza muita gente iria morrer. As ordens do comando geral vinham de São Paulo, e o que chegava até nós era para aguardar melhor momento para atacar o quartel militar de Marabá. Sabíamos que tinha chegado à região mil paraquedistas do Rio de Janeiro. Eram homens que receberam treinamento com oficiais americanos, que participaram da Guerra do Vietnã. Julho de 1973, dia que jamais vou esquecer. Recebemos ordens do Comitê Central do Partido para iniciar o ataque ao quartel militar do exército, em Marabá. Marta fez uma reunião conosco e determinou que a tropa se dividisse em três colunas: a primeira e a mais numerosa, comandada por ela, atacaria a sentinela norte; a segunda, comandada por Geraldo, atacaria a sentinela sul e a terceira, comandada por mim, atacaria a entrada. Tudo foi organizado, e a ordem era seguir em direção ao quartel. A noite estava chuvosa e escura. Alguma coisa pairava no ar. De repente, ouvimos tiros de metralhadora repicando por todos os cantos. O exército ficou sabendo do nosso ataque, e se adiantou. Alguém, em São Paulo, nos entregou, resultado de uma prisão efetuada pelo regime. Foi um verdadeiro massacre. Fomos pegos de surpresa. Marta foi levada para um canto do local onde estávamos. Lá, na frente de inúmeros soldados, foi estuprada e morta com vários tiros de fuzil. Geraldo tentou escapar, juntamente com seus homens, e não teve sucesso, também recebeu inúmeros tiros pelo corpo. Eu, que estava mais distante, consegui trocar tiros com os soldados, mesmo assim, fui ferido e consegui rastejar uns 150 metros dali. Procurei me esconder e esperar o melhor momento para fugir e encontrar ajuda. Aos poucos, e com muita dificuldade, cheguei até a casa do professor de história, permanecendo ali por um ano. O exército não deixou ninguém vivo. Alguns foram presos e levados para Brasília, outros, depois de torturados foram fuzilados. Todos acabaram sendo enterrados como indigentes em cemitérios de cidades próximas de Marabá. Assim acabou o nosso sonho de tornar o Brasil uma nação socialista. Os militares foram cruéis, mas como disse Rosângela certa vez: “comunista não lamenta o leite derramado e nem se acovarda. Não pede arrego aos burgueses”. Eu ainda não voltei ao meu país, prefiro viver longe. Depois de todos esses anos, distante da pátria, escrevendo e lendo muito, com saudades de Marta, deixo o tempo passar. Às vezes, quando o sono não vem, procuro na minha memória a imagem da única mulher que amei na vida, e que não tive a oportunidade de tê-la em meus braços.

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