quarta-feira, 1 de abril de 2015

LÁGRIMAS DA PAIXÃO

Noite chuvosa e fria, com o vento sul uivando. A cidade estava quieta, somente o barulho das folhas e dos papéis que eram jogados pela força da ventania. A Rua João Pinto, com seus sobrados antigos, parecia uma imagem de filme de terror. A pensão da dona Benta, que ficava na Travessa Ractliff, esquina com a João Pinto, era o único prédio que tinha algumas lâmpadas acesas. Eu morava no segundo pavimento, na parte da frente, assim era possível acompanhar a movimentação do lado de fora. Já passava da meia-noite, quando resolvi descer e caminhar um pouco para acalmar o coração. Alguns pensamentos perambulavam pela minha mente, entre eles, o momento político que o Brasil estava atravessando. O regime militar matava e torturava oposicionistas de todas as cores e a pressão era grande. Como poeta e escritor, a minha situação estava ficando insustentável. Por tudo que enfrentava, o caminho natural era o exílio no Chile, mas lá a situação também não estava boa. A eleição de Allende aguçou a fúria das direitas chilena e americana. Outra coisa que me deixava triste eram as notícias de que o Governo Estadual iria aterrar a Baía Sul, acabando com o Mirante. O mar ficaria mais longe dos boêmios e transeuntes noturnos. Em nome do progresso, um aterro e uma segunda ponte transformariam a paisagem da linda ilha de Santa Catarina. Como estávamos vivendo numa ditadura militar, os jornais e demais meios de comunicação eram censurados. Só podiam falar bem dos militares e, quem ousasse dizer alguma coisa contra, a prisão, tortura e morte eram a vertente natural de qualquer vivente. Para alegria ou tristeza, o Brasil acabava de vencer a Copa do Mundo, no México. Os militares ganharam o que mais queriam: a propaganda de que o sistema estava cada vez melhor. O milagre econômico fechava a boca dos democratas. Eleições? Nem pensar... Isso era coisa de comunista ou católico progressista. Enquanto esses pensamentos povoavam minha mente, resolvi ir à Praça XV, sentar num banco e conversar com o silêncio e com os fantasmas da noite fria e chuvosa. Como estava bem protegido, com uma capa preta e um guarda-chuva, não me importava com a quantidade de chuva que àquelas alturas não era tão forte assim. Interessante em tudo isso, é que enquanto me dirigia à Praça, comecei a ouvir uma música que vinha do mar. Era uma melodia que nunca tinha ouvido, mas deixava meu coração mais calmo. Os sons da chuva fina e do vento se misturavam ao som da música. Não sei por que, mas parecia que algo estava para acontecer, pois sentia que talvez fosse a minha última caminhada nas terras de Santa Catarina. A Praça XV estava solitária, nenhuma viva alma se fazia presente. Algumas corujas guarneciam o local, quem sabe, esperando por mim. Sentei num banco e ali permaneci por algum tempo, conversando com os fantasmas do passado e com os meus medos, que nunca ficavam longe de mim. Olhei para o Palácio Cruz e Sousa, sua arquitetura barroca, e fiquei a imaginar: quanta história política suas paredes guardavam. No Mirante, alguns boêmios teimavam em permanecer enfrentando o frio e a chuva fina. O mar batia suavemente na orla, talvez se despedindo, pois logo um aterro iria tomar o seu lugar. Observava cada detalhe da paisagem noturna de Floripa, quem sabe eu também estivesse vivendo um adeus. De repente, olhei um pouco para baixo na direção do final da Rua Felipe Schmidt e vi uma figura feminina, vindo em minha direção. Acompanhei cada passo que a estranha dava e, aos poucos, ela ficou frente a frente comigo. - Boa noite, moço! Como vai? O que está fazendo aqui sentado, numa noite fria e chuvosa? – perguntou a misteriosa e linda moça. - Devolvo a pergunta. – respondi, com ar de pura estranheza. - Estou à procura de um bom papo, quero beber alguns goles de vodka e, quem sabe, uma noite de amor. Quero aproveitar os momentos da minha vida. Eu não sei o que vai acontecer amanhã, e, assim poderei viver alguns instantes, antes que o grande final da existência bata à porta. – respondeu, com uma mistura de mistério e desejo. - Boa resposta! Interessante ver a vida dessa forma. Eu também penso assim. Por isso é que estou aqui, para aprofundar as ideias sobre a existência humana. – acrescentei. - Já que você aprecia a minha forma de pensar, seria interessante que nos apresentássemos. Eu me chamo Cecília, e você? – perguntou a linda moça. Cecília era uma loira, com olhos verdes e cabelos compridos. Tinha uma beleza fora do comum, com pernas grossas e um bumbum avantajado. Os seus lábios carnudos pareciam querer um longo e doce beijo. Ela usava um vestido preto e por cima uma capa preta, demonstrando que tinha bom gosto. Desde o momento em que ela se aproximou, senti algo profundo. A química foi forte e irresistível. - Então, Cecília, eu gostei de você, principalmente da forma como você vê o mundo. Ainda mais em se tratando de uma linda mulher, que pode deixar qualquer homem louco de desejo. – revelei, com medo que ela fizesse uma falsa ideia a meu respeito. - Mas, não falou o teu nome... – assinalou. - Desculpe, Cecília. Fiquei tão entusiasmado com você, que acabei me esquecendo de dizer o meu nome. Eu me chamo Jorge e, nas horas noturnas, escrevo poemas e algumas histórias. – acrescentei. - Tudo bem, poeta, quem sabe a gente continua a conversa em algum lugar mais tranquilo, para podermos aprofundar as nossas ideias existencialistas... - sinalizou. Não podia negar o convite. Mas antes de irmos para a pensão, passamos no bar do Mirante e tomamos algumas doses de vodka, para espantar o frio. Entre goles e algumas pitadas de cigarro, conversamos sobre literatura, história e política. Ela falou que era militante do Partido Comunista Brasileiro e atuava na clandestinidade. E eu disse que era militante do mundo, que navegava pelas mais diversas áreas do conhecimento humano, sem nenhum atrelamento. A noite fria, chuva fina, vento sul uivando feito louco e a minha solidão, eram um prato cheio, para me esconder nos braços de Cecília. Ela, vendo que eu tinha aceitado o convite, pegou-me pela mão e fomos para a pensão Dona Benta. Logo que entramos no quarto, ela tirou a roupa e se jogou debaixo das cobertas, esperando, louca de desejo. Também fui direto. Não perdi mais tempo. A cada beijo na boca, um gemido. Cecília foi uma mulher ardente, desejosa de sexo sem limite. A noite foi pequena, acabei adormecendo nos seus braços. Quando acordei, somente o seu perfume se fazia presente. No criado mudo, deixou a calcinha vermelha, como recordação da nossa noite de amor. Fiquei na cama até ao meio-dia. O dia estava ensolarado, convidativo para caminhar pelas ruelas da cidade, que naquelas alturas estava agitada, diferente da última noite. A carta que recebi de um amigo, que vivia na França e as conversas com Cecília, me deixaram pensativo. Tentei várias vezes arrumar emprego nos jornais e nas rádios, como redator, ou mesmo repórter. Não obtive êxito, porque já me conheciam e sabiam dos meus pensamentos sobre a realidade política. Quando cheguei à pensão Dona Benta, a proprietária veio ao meu encontro, muito assustada, dizendo: - Senhor Jorge, acabaram de sair daqui, dois homens da polícia, queriam conversar sobre a sua vida. Queriam saber o nome da mulher que dormiu com o senhor. Fizeram inúmeras perguntas e deixaram um papel. - Obrigado, dona Benta. Eu já esperava por isso. – acrescentei, e subi direto para o meu quarto. Era a polícia do regime militar, que queria a minha presença na Delegacia de Ordem Política e Social, o mais rápido possível. Tinha certeza de que se eu fosse até lá, nunca mais sairia vivo. Estava na hora de colocar em prática o plano de fuga para o Chile, e de lá para a França. Ao arrumar a cama, encontrei um envelope, com mil dólares, deixado por Cecília. Havia ainda um bilhete explicando a rota de fuga para a França e algumas palavras amorosas. Segui o referido plano. Contratei um táxi, para me levar a Porto Alegre e de lá embarquei num ônibus até Montevidéu, no Uruguai. Aí permaneci uma semana, seguindo orientação de Cecília. Nesse tempo, aproveitei para conhecer museus e bibliotecas, assim como a vida boêmia da capital uruguaia. Mesmo seguindo o plano, ainda não tinha claro o papel de Cecília na minha vida. Não era militante político, apenas um poeta e escritor. A criação mais relevante que havia feito na área cultural, era o lançamento de um livro de contos, que relatava a vida sofrida dos militantes comunistas, durante a ditadura franquista. Nele, criei um personagem, chamado Pietro Ugrade, inteligente e articulado, que comandou por muito tempo a maior resistência ao regime de Francisco Franco. Nunca foi preso, sempre tinha uma saída e lançou inúmeras derrotas ao regime. Ninguém soube para onde foi, mas deixou o rastro de uma grande legenda na luta armada em favor da democracia. Essa obra foi destaque nos jornais de esquerda do Chile, como sendo a cartilha para os militantes comunistas no mundo todo. Interessante, que quando escrevi esse livro, estava vivendo um momento de tristeza sentimental. Tinha perdido a mulher dos meus sonhos num acidente de carro. A obra foi escrita em três noites e consumi dois litros de vodka. Agradeço profundamente a um livreiro, lá de Blumenau, que editou a obra em francês e lançou nas principais capitais europeias. Ele tinha bons contatos com os principais editores. Por dois anos ele vinha da sua cidade para me entregar dinheiro, resultado da venda do livro. Esse amigo desapareceu, anos mais tarde, nos porões do regime militar. Às 22 horas de um domingo do inverno de 1971, embarquei com destino a Paris, deixando a América Latina repleta de incertezas e assassinatos de democratas. Triste tempo e triste vida das pessoas que somente queriam viver numa sociedade livre. A Águia do Norte, com sede de sangue, voava por todos os países que ainda teimavam em colocar em prática a democracia. A escuridão da selvageria, que acontecia nos porões da ditadura militar brasileira, estava se espalhando pelo Chile, Uruguai, Paraguai e, logo mais, seria a vez da Argentina. Quantas famílias perderam seus filhos e quantas mães ainda choram o desaparecimento dos seus amados filhos. Quem pensasse diferente, era comunista e, sendo comunista, tinha que morrer. Segundo a Comissão dos Direitos Humanos da ONU, 80% dos assassinados pelas ditaduras latino-americanas, não eram comunistas e, sim, pessoas que lutavam pela liberdade. Todos esses questionamentos povoavam a minha cabeça. Eu pensava que não era correto fugir do meu próprio país, simplesmente porque pensava diferente e queria a felicidade dos oprimidos. Mas, os filhotes do grande império do norte achavam que era preciso afogar as democracias latino-americanas. Já era de manhã, quando desembarquei em Paris, cidade da liberdade, país da consciência livre, nação onde comunistas, anarquistas, direitistas, enfim, todos conseguiam viver em harmonia, mesmo pensando diferente. Para mim era uma grande alegria recomeçar a vida na capital francesa, mas com o coração partido, porque tinha deixado a terra natal, ocupada pela escuridão da ditadura militar. Logo que desembarquei, no saguão do Aeroporto de Orly, avistei Cecília, bela e muito bem vestida, me esperando para dar as boas vindas. Veio ao meu encontro, dizendo: - Bom dia, meu amado Jorge, que bom ver você e saber que tudo correu bem. - Bom dia Cecília, minha linda mulher, charmosa e misteriosa. Você fez tudo certo, deixou meu coração feliz e ainda cuidou da segurança. – revelei, com profunda felicidade em ver a mulher que mexeu com os meus sentimentos. - Vamos pegar um táxi para irmos ao meu apartamento. Temos muito que conversar. Explicarei a você os motivos da minha ida a Florianópolis, para resgatá-lo da iminente prisão e morte nos porões da ditadura militar brasileira. – destacou Cecília, que naquele momento, me analisava dos pés à cabeça. Ela observava os pequenos detalhes das pessoas e das coisas ao seu redor. - É verdade, querida. Realmente, preciso fazer várias perguntas. No início, achei que tivesse sido obra do acaso, o nosso encontro na Praça XV, naquela noite de chuva fina e fria. Depois, com o teu bilhete e os dólares, passei a acreditar que tudo tenha sido planejado em algum momento. – assinalei, com ansiedade, para saber a verdade. - Fique tranquilo, meu amado poeta. Quando te conheci naquela noite, tive uma surpresa agradável. Pensei que iria encontrar um homem idoso e feio, mas pelo contrário, na minha frente estava um belo homem, charmoso e sensual. Tive uma das noites mais importantes da minha vida. Para uma mulher de 30 anos, foi um privilégio. Fiquei triste em ter que sair bem cedinho do calor dos teus braços e embarcar num ônibus com destino a Curitiba. Durante toda a viagem, a tua imagem na saía da minha cabeça. Não posso negar, como comunista e ateia, que as emoções foram tão fortes, que até tenho medo de um dia perder você. – revelou Cecília, totalmente meiga e carente dos meus beijos e abraços. - Por que eu, minha amada Cecília? Quem está por trás do meu resgate das garras do império do mal? Fale um pouco da tua vida e diga realmente quem você é. Porque eu ganhei a liberdade e um grande amor. Como é bom voltar a ser amado e amar uma mulher como você. Hoje, tenho 43 anos e me sinto como um homem com 30. Talvez, como poeta, esteja vendo a vida com mais paixão e alegria. – disse, com grande satisfação no coração e me sentindo viajando nas nuvens. - Jorge, meu lindo poeta, o editor de Blumenau, que tinha vários contatos no Brasil e no exterior, ficou sabendo que você iria ser preso e encaminhado para Curitiba. Lá, na capital paranaense, seria torturado e morto, dentro da Operação Condor, desencadeada pelas ditaduras militares do continente latino americano. O objetivo da referida operação era matar todos os oposicionistas de todas as áreas. Você se tornou importante com o lançamento da tua obra, sobre a vida dos militantes comunistas espanhóis que lutaram contra a ditadura franquista, e serviu e serve como cartilha na luta contra o fascismo. Os militares brasileiros queriam, de todas as formas, matar você. Na reunião do Comitê Central do Partido Comunista Francês, fui designada para viajar ao Brasil e tirar você do iminente assassinato. Faço parte de uma organização mundial, que cuida dos oposicionistas que sofrem perseguição em regimes totalitários. Também sou procurada no Brasil, mas até hoje não conseguiram seguir os meus passos, porque desapareço com a poeira e as nuvens que o infinito coloca para me proteger. Para teu conhecimento, sou catarinense de uma pequena cidade do Oeste, chamada Modelo. Sou filha de alemães, estudei para freira em Caxias do Sul, Estado do Rio Grande do Sul, mas não cheguei a me formar. Acabei me apaixonando por um padre italiano, de esquerda. Fugimos para a Itália e não demorou muito para que ele fosse expulso da igreja. Depois de dois anos, o padre foi morto pelas Brigadas Vermelhas, na disputa pelo poder da esquerda armada na Europa. Com esses acontecimentos e com o coração estraçalhado, virei prostituta de dia, para fazer a faculdade à noite. Durante cinco anos sofri horrores nas ruelas de Roma. Conheci o submundo das drogas e do sexo. Vivi a experiência de ser amante de homens ricos e casados, que na sociedade pregam a moralidade, no mundo do sexo e das drogas mostram a cara. Mesmo com saudade do Paolo Francesco, levei a vida, e a vida me colocou em Paris, como militante comunista, porque vi as contradições e os preconceitos da sociedade burguesa. Sabe, Jorge, faz dez anos que não visito os meus pais. A saudade é grande, há dias que choro, copiosamente, na solidão do meu pequeno apartamento. As imagens da minha infância, indo à escola, de alpargatas e com dois cadernos, aparecem de maneira linda. Ainda é muito forte na minha cabeça o dia da formatura do segundo grau. Os meus pais, alegres em ter uma filha inteligente que seria uma grande mulher. Eles queriam que eu fosse médica ou freira. Nada disso aconteceu. Hoje, o importante para mim, são os caminhos de luta e a visão revolucionária. Sou comunista porque quero que as pessoas sejam felizes e tenham acesso à educação e à saúde. E, acima de tudo, que sejam livres para escolherem seus próprios caminhos. Onde não exista a luta de classes, mas somente a classe de um só povo, sem exploração dos trabalhadores. E, principalmente, que vivam numa democracia ampla geral e irrestrita. – concluiu Cecília, com os olhos cheios de lágrimas. Enquanto esperávamos o táxi, tínhamos sentado no banco de uma praça, e as palavras de Cecília foram tão fortes e emocionantes, que acabei chorando também. Não precisava dizer mais nada. Eu estava na frente de uma personagem inesquecível, em todos os sentidos. Grande mulher! Inteligente. Parecia uma deusa da Grécia, que veio reviver uma vida na defesa dos humilhados e ofendidos. Ela não tinha raiva, ódio, rancor, e muito menos queria vingança. Tinha pena dos ditadores e torturadores. Para Cecília, eram pessoas que ainda não tinham encontrado a verdade e precisariam estudar e assim saber que estavam equivocadas. Alma linda e doce, pessoa extraordinária... Durante trinta dias passamos juntos, nos amando, conversando, trocando ideias sobre os acontecimentos do mundo. Fui apresentado aos dirigentes comunistas da França, que foram carinhosos comigo. Para não ficar sem fazer nada, me ofereceram trabalho na redação do jornal do Partido Comunista Francês. Cecília ficou uma temporada na Argélia, dando aula de marxismo aos jovens do PC argelino. Vivemos um longo período juntos. Nunca tivemos desavença. Certo dia, o dirigente maior do Partido Comunista Francês veio com a notícia de que estávamos autorizados a viajar clandestinamente ao Brasil, através da Argentina, via Dionísio Cerqueira, para visitar os pais de Cecília. Era uma reivindicação antiga dela que estava sendo atendida. Tudo foi preparado e organizado, com a participação do Grupo dos Montoneros, da Argentina. Assim, com segurança, iniciamos a viagem, de navio. Aproveitamos a viagem para nos amar mais ainda. Como foi linda aquela viagem de navio! Era noite de lua cheia quando chegamos à cidade de Modelo, Estado de Santa Cataria. Cecília parecia caminhar nas nuvens, tamanha a felicidade. Em todos os momentos apontava para mim os lugares que viveu a sua infância. A residência de seus pais ficava na última casa da principal rua da cidade. O carro que nos trazia era dirigido pelo companheiro Urbano, membro dos Montoneros e conhecedor de Santa Catarina. Logo que desembarcamos, Cecília gritou: - Papai! Mamãe! Sou eu! A filha amada de vocês, que está de volta! Papai! Mamãe! Eu não morri. Estou aqui para matar a saudade de vocês! Onde vocês estão? Gritando e chorando a minha amada caiu de joelhos e beijou a sua terra natal. Nesse momento, a porta da frente da casinha de madeira, branca de janelas verdes, foi aberta e os pais de Cecília saíram na varanda, e gritaram: - Cecília! Nós tínhamos certeza de que você não tinha morrido. Todas as noites, através do sonho você vinha nos consolar, falando palavras bonitas, dignas de uma grande filha. Ficamos em Modelo uma semana vivendo com a família dela, esquecendo as questões políticas mundiais. Cada minuto foi vivido intensamente, que até parecia que tudo era despedida. O ambiente estava propiciando sensações doces e meigas de almas que enfrentarão a difícil tarefa de continuar caminhos opostos. Tudo tem um tempo e, às vezes, o destino nos derruba violentamente. No final de uma tarde de um lindo dia, quando o sol começava a se despedir, ouvimos o barulho de dois automóveis, com placas da Argentina, que estacionaram na frente da casa. Urbano e Alcides estavam vindo para nos buscar. Segundo afirmaram, foi necessário que dois carros viessem por questões de segurança. Até hoje isso me deixa com uma pulga atrás da orelha. Não andamos mais de 30 quilômetros, quando fomos surpreendidos por cinco camionetas (veraneio) pretas e repletas de soldados do exército brasileiro. Não deu tempo para nada, era bala para todo lado. Cecília foi metralhada e morreu na hora. Urbano arrancou rapidamente, escapando da emboscada e pegando uma estrada secundária. No momento, achei tudo muito estranho. Os tiros não eram dirigidos em nossa direção. Não chegamos a ser baleados e nem corremos algum risco. Segundo a imprensa da ditadura militar brasileira, Cecília e Alcides ficaram cravados de balas e, no final, tiveram seus corpos queimados e enterrados como indigentes. Para a alegria dos fascistas, a revolucionária catarinense foi morta, mas não conseguiram matar a consciência livre da sua alma, que perambula no universo, lutando em favor da democracia. Depois do assassinato da minha amada, voltei para Paris, de onde jamais sairei. Quando chove, e o frio intenso chega às noites parisienses, deixo o pensamento viajar, à procura da pessoa mais importante da minha vida. Adormeço, e assim consigo conversar, em sonho, com a minha eterna Cecília.

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