segunda-feira, 7 de maio de 2018

DESPERTAR DE UM SONHO

Desde a última primavera que caminho. Larguei a vida e resolvi conhecer outro mundo. Deixei o que estava fazendo. Trago comigo muitas lembranças. Não vou enumerá-las, porque não é necessário. As imagens da saudade falam por si só. Agora ando sem preocupação com a chegada. Sem revolta e sim, procurando outras paisagens que acalentem o meu coração. Como é diferente aqui, e bonito! Há jardins para todos os gostos. Rios e cachoeiras por todos os cantos e recantos. Até mesmo a forma de chover é diferente. As bagas de chuva não são pesadas e sim finas e levemente mornas. O sol ilumina alguns lugares, porque a sombra das frondosas árvores se destaca de forma elegante. As moradas são construídas em cima de platôs, para apreciar a beleza das formas arquitetônicas. Existem inúmeros gramados, com as mais diversas gramas, desde a mais fina a mais grossa. Em cada residência tem um pomar com as mais variadas frutas. Na semana passada, ao conhecer uma vila embaixo de uma grande montanha, me defrontei com uma senhora de aproximadamente 70 anos. Simpática e bonita, logo veio me cumprimentando. Sorrindo disse: - Como vai Lucian? Quanto tempo! Por onde andavas? – Perguntou a carismática senhora. - Estou bem. Mas, como sabe o meu nome? Não lembro de conhecer a Senhora. – Respondi surpreso. - Bem. Antes de responder a sua pergunta, deixe que eu me apresente. Sou Larita, filha das velhas terras geladas da Rússia. Você não lembra, mas somos antigos conhecidos. Com o decorrer do tempo, você vai se lembrando. – Acrescentou Larita. - Eu sei tudo sobre a sua vida e logo você saberá tudo também da minha vida. Eu estava ansiosa para ter esse encontro com você. Estou a um longo tempo aguardando o momento certo para termos uma valiosa conversa. Não se preocupe, pois a nossa conversa não será desagradável, mas será esclarecedora e bonita. Você veio para cá numa longa noite de sono. Preparamos a sua chegada, pois queríamos que fosse lenta e sem sobressaltos. Depois da sua passagem de um lado para o outro, e do descanso normal de todo viajante, você está efetuando uma caminhada para conhecer e se adaptar ao local onde irá residir daqui para frente. Enquanto Larita ia conversando comigo, me vi sentado num banco de madeira, próximo a um riacho. Assim como as imagens de quem era aquela simpática senhora, que aos poucos foi se transformando numa mulher bem mais nova e linda. - Lucian, você ainda não lembra, mas a nossa primeira convivência vem das quentes estepes da amada Rússia. Eu era a única filha de um famoso general russo e, você, filho de um nobre fazendeiro do Caucácio, antiga região da grande Rússia. Desde o primeiro momento em que nos olhamos, algo profundo surgiu entre nós. Esse encontro aconteceu quando a minha família foi negociar uma datcha com seu pai. O meu pai queria adquirir uma casa de campo para passar as férias comigo e com mamãe. Vi você pela primeira vez embaixo de uma macieira. Estava participando da colheita anual de maçãs. Aproximei-me e iniciamos uma bela história de amor que até hoje insiste em permanecer em nossas almas. Os nossos pais ficaram maravilhados por vermos apaixonados um pelo outro. Casamos num outono, estação das folhas mortas. Vivemos grandes momentos. Viajamos para todos os lugares, pois tínhamos muitos recursos. Tudo ia bem até que um dia o nosso caminho foi interrompido por uma tragédia. A nossa noite de amor foi violentamente cortada. Estávamos em plena carícia amorosa quando a nossa linda datcha foi levada pelas águas do rio Don. E com as águas turbulentas do Don, eu e você fomos tragados. Nunca mais encontraram os nossos corpos. Esse trágico acontecimento tornou-nos seres com grande rancor, mágoa e ódio. Muitas viagens existenciais fizemos, muitos desencontros aconteceram, mas em nenhum momento tivemos a oportunidade de nos reencontrar. Você se encaminhou pelo lado do militarismo, aumentando o ódio no coração. Eu me enveredei pelo caminho da prostituição e do ópio. Em todos esses momentos eu e você tínhamos sonhos sobre a vida na amada Rússia. Já se passaram 400 anos e, agora, estamos preparados para continuar o sonho interrompido pelas águas selvagens do rio Don. Não importa mais o passado nem o porquê dessa luta cruenta pelo reencontro de duas criaturas que estavam vivendo uma inesquecível vida a dois. - Engraçado, no início da sua conversa, você era bem mais velha, agora mudou totalmente. Está bem jovem e muito bela. Enquanto descrevia o passado, as imagens acompanhavam a narrativa e eu ia me emocionando. – Acrescentei. - Aconteceu com você também. Você não percebeu, mas de longe, eu via um senhor com seus 70 anos de idade, caminhando e observando a paisagem, como que procurando alguma resposta. Agora, vejo à minha frente, um jovem lindo e com os mesmos dotes físicos que conheci no distante tempo que nunca foi esquecido. – Revelou. Agora, a caminhada não era mais solitária. Depois do diálogo e das revelações, eu e Larita descemos por uma estrada que, aos poucos, foi se transformando no mesmo caminho que levava à nossa datcha. Como se fosse um pesadelo que tinha terminado, estávamos sentados na grande varanda, observando o caudaloso rio Don viajando para o Mar de Chukchi. Talvez fosse necessário termos passado por tantos pesadelos ao longo dos 400 anos, para valorizarmos o profundo sentimento de duas almas.

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