terça-feira, 5 de janeiro de 2016

TACITURNAS MONTANHAS

As montanhas, onde eu morava, misturavam-se com nuvens de todos os tipos, claras e escuras. Imagens dessas lindas figuras chegavam até a minha casa de madeira, estilo rústico, expressando poesia, que muitas vezes, de tão emotiva e calma levava-me a um sono profundo. Eu fazia longas caminhadas entre os desfiladeiros, observando os vôos das borboletas, das águias e dos passarinhos. As borboletas mais coloridas eram capturadas e levadas para serem guardadas num grande quadro, colocado na parede da sala da minha casa. Sentado numa espreguiçadeira, na varanda, eu via o descer caudaloso de um riacho que desembocava num grande lago de águas cristalinas como um espelho, que refletiam a minha imagem quando me aproximava para beber. A paisagem, repleta de árvores centenárias, tornava o local um profundo encanto. O silêncio era o meu companheiro, conversando comigo nas horas mais melancólicas. Para cada pensamento triste, a resposta do silêncio aparecia numa bela composição paisagística do local. Eu morava ao pé da principal montanha, chamada de Lua, porque na lua cheia toda a região era iluminada, sem deixar um canto na escuridão. Os arbustos, verdes e cinzas, exalavam um perfume refrescante, parecendo que eram as nuvens as responsáveis pelo cheiro. A propriedade onde eu morava foi adquirida pelo meu avô, logo após o término da Primeira Grande Guerra, pelo ano de 1920. Ali, ele formou a sua família e só saiu para ser enterrado a duzentos metros da casa, no primeiro platô da grande montanha. Com o decorrer do tempo, alguns familiares morreram, outros foram embora e nunca mais voltaram. A família, praticamente, desapareceu, comum, para as pessoas da região. Os Moranski eram descendentes de ciganos e escolheram o norte da França, mais precisamente, a Normandia, para viver. Como região litorânea e próxima da fronteira com a Bélgica, os Moranski eram criaturas inquietas e determinadas. Eles sempre participaram de conflitos e revoluções, ora defendendo a raça cigana, ora lutando ao lado do país que os acolheu. O meu avô viveu 85 anos e sempre acreditou na igualdade das pessoas. Por ter essa atitude perante a vida, foi perseguido por vários governos. Eu não tinha essa preocupação, preferia viver ao lado da natureza, deixando a luta dos homens distante da minha realidade. Como herdeiro dos Moranski, me recolhi ao lado das grandes montanhas. Não queria briga com ninguém, a paz e a harmonia eram as minhas amigas inseparáveis. Precisava defender as terras da minha família e, assim, colaborar na preservação daquele local, considerado um verdadeiro templo da natureza. A minha vida amorosa era escassa e, quando acontecia alguma aventura, ela ia embora com a temporada das chuvas, principalmente nos meses de janeiro a março. Às vezes, lembro da cigana Cecília, que fez de tudo para viver comigo. Prometeu amor eterno, mas percebendo que não iria me conquistar, resolveu desaparecer. Nunca consegui permanecer com alguma mulher por muito tempo, por mais que tentasse, acabava ficando nos braços da solidão. As minhas energias eram concentradas em coisas transcendentais. Talvez, por ser descendente de cigano, eu não tenha conseguido criar raiz na vertente da paixão. Os meus dias eram preenchidos com leituras de livros sobre a história antiga e os poemas russos. Até hoje tenho uma grande paixão pela literatura desse povo. Ao amanhecer, quando o sol jogava os seus primeiros raios de luz, saía para ordenhar a cabra Salita. Depois, tomava meu café com pão de milho e salame comprado na vila, distante uns 40 km. Antes que o sol se tornasse forte, pegava a enxada para fazer a manutenção da horta. Perto do meio-dia, voltava para casa, para fazer o almoço, com feijão, arroz, almeirão e carne de galinha. Não havia sequer um dia que eu não observasse as montanhas. Era como uma oração, olhar aqueles imensos montes de terra cobertos por uma espessa camada de árvores de todas as espécies. A cada minuto e a cada segundo que eu admirava a grande montanha, sentia a minha alma viajar por lugares jamais visitados. Até hoje me lembro do dia em que fiquei intrigado ao ver uma águia no alto de uma árvore, olhando na minha direção. Ficamos nos olhando por muito tempo, até que ela veio, voando, e pousou perto de mim, mais precisamente, junto ao pé de limão siciliano. Com seus olhos grandes e penetrantes, ficou parada me observando. Nesse momento, ela iniciou um canto, que ecoou por todo o aglomerado de montanhas. A canção era triste, parecia que estava falando de sua melancolia, ou até mesmo da perda de seus filhotes. Ao terminar o canto, olhou para o céu e desapareceu entre as nuvens. Daquele dia em diante, me senti um ser especial, alguém que entende a língua das aves. Isso porque, os passarinhos que nunca ficavam próximos de mim, começaram a voar ao meu lado. No inicio não gostava, ficava intrigado, mas, aos poucos, fui me adaptando à nova realidade. Todo final de mês, eu ia à vila, para comprar mantimentos e pegar os livros encomendados. Aproveitava para conversar com Milos, comerciante e jornaleiro. Passava o dia todo, só retornava ao final do dia. Era primavera de 1969 e nada havia mudado na minha vida. Solitário, para os seres humanos, mas sociável para a natureza. As montanhas, com seus mistérios e silêncio, dialogavam muito comigo. Ao retornar de uma caminhada, ouvi um barulho que vinha da minha casa. Era o Milos, que estava nervoso, e queria muito falar comigo. - Kosinski, meu amigo, querem destruir tudo! Vão construir um grande lago para gerar energia elétrica. As tuas terras vão desaparecer e serão usadas para construir a represa. Você tem que fazer alguma coisa. – revelou Milos, com os olhos arregalados. - Enquanto eu viver ninguém vai mexer com a natureza, essa amante da minha vida. – assinalei, com profunda dor no peito. - Mas Kosinski, você é apenas um solitário no meio dos poderosos. – lembrou Milos. - Você vai ver o que posso fazer para salvar esse recanto maravilhoso. Esse local será preservado para sempre. Não duvide da minha determinação. – acrescentei, com o meu sangue cigano fervendo. Naquele mesmo instante, peguei algumas roupas, documentos de propriedade das minhas terras, e iniciei a luta. Antes, porém, entreguei a chave da casa para o meu amigo, Milos. Entrei em contato com alguns jornalistas que eu conhecia, e montamos uma estratégia para mostrar ao mundo a importância de se preservar a natureza. A minha luta durou cinco anos. Sofri ameaças do proprietário do empreendimento, mas não cedi um milímetro. Durante esse tempo, percorri as principais capitais do mundo, dando entrevistas e conversando com as pessoas mais esclarecidas. A empresa que queria construir a hidrelétrica, não suportou a pressão popular e acabou desistindo do projeto. Após a vitória, voltei, para ficar ao lado das montanhas, e esse paraíso, até hoje, é frequentado por todos que sabem da importância de cuidar da natureza. Montei uma pousada e, nos finais de semana, recebo pessoas de várias partes do mundo.

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