sábado, 12 de fevereiro de 2011

A Dívida

Não acredito no que estou vendo, já passa da meia noite, nem mesmo a claridade da lua apareceu. Poucas estrelas no céu, tudo está muito escuro, talvez mais escuro que a minha alma. Para ajudar na sensação de medo que toma conta de mim, uma névoa paira sobre o lago, que até ontem era possível ver o fundo, os peixes nadando. O vento que soprava na copa das árvores em volta do lago, foi soprar em outro canto. Não tenho sossego, percebo que algo está para acontecer. As trevas estão presentes, anunciando a cobrança. A minha saída daquele lugar é o motivo da reviravolta que não sei aonde vai dar. A coruja preta volta a cantar em cima de um galho seco de aroeira, não sei se está contente ou com receio do que está por acontecer. Uma cobra está rastejando a caminho do lago, está com sede, ou em busca de comida. Procuro uma pedra para sentar, não tenho forças para continuar correndo, estou fugindo do medo, quero me esconder, alguém me cobra não sei o quê.
            De repente, ouço um grito pedindo ajuda e dizendo que não vou conseguir sair do lamaçal. Tento tapar os ouvidos, mas não adianta, o grito vem de dentro da minha alma. A voz me diz que preciso cumprir a promessa, os anjos negros precisam de mim. Vou até a beira do lago, sinto o cheiro de podridão. Engraçado, até ontem a água desse lago era limpa e com perfume de natureza. Quando tento molhar as mãos na água, uma voz grossa e forte diz:
            - Não encoste a mão na água! Você não merece se lavar, a limpeza não te pertence! Você é mais sujo que essa água!
            Olho para todos os lados e não vejo ninguém, somente o barulho da jararaca nas folhas secas, correndo atrás de um camundongo para se alimentar. A coruja continua cantando, como se fosse uma orquestra infernal, parece que ela está fazendo um fundo musical. Num galho seco, mais na frente, dois corvos abrem o bico, querem carne fresca e me olham com os olhos avermelhados. Tento mais uma vez molhar as mãos e a voz reafirma:
            - Não tente! Porque se você colocar a mão na água será engolido pelo lago, assim como aconteceu com a maioria dos endividados que ousaram descumprir o meu aviso.
            - O que eu faço aqui? Por que estou na beira do lago, em vez de continuar o caminho? – perguntei para a voz que a cada momento se mostrava mais sombria.
            - Você sabe porque está aqui. Não cumpriu a promessa, e todos aqueles que não cumprem o prometido, serão cobrado nos quintos dos infernos e irão apodrecer no fundo do lago. Nós fizemos a nossa parte, hoje você é um homem rico, deixou de fazer parte dos favelados do morro. Tem tudo que quer: dinheiro, mulheres bonitas, carros importados, viaja para todos os lugares, enfim, é o cara!
            - Não me lembro de promessa alguma! – respondi sem pensar muito, apenas queria sair dali, o cheiro do lago estava me amedrontando, com vontade de vomitar até as tripas. Ratos vinham beber daquela água imunda.
            - Você é engraçado! Quando era pobre e passava fome, pedia ajuda aos céus e aos infernos. Acendia vela para tudo que é santo, nunca se preocupou em saber para quem estava rezando e para quem estava suplicando. Eu estava quieto no fundo da caverna, brincando com as minhas mulheres. Gostei da forma que pediu ajuda e resolvi te ajudar, montei uma equipe para fazer de você um homem rico e poderoso. Achei interessante a forma do pagamento do meu serviço, mas até o momento, depois de vários anos, nada de concreto veio da tua parte.
            - Não sei do que você está falando! – falei - já cansado e com receio do que poderia acontecer comigo.
            - É bem isso mesmo! Todos os ricos do mundo são assim. Pedem ajuda para ganhar dinheiro e quando conseguem, esquecem das promessas feitas na agonia da miséria. O dinheiro, meu caro, é coisa do mal, não traz felicidade e sim uma falsa satisfação que aos poucos vira melancolia. Alguém já disse há muito tempo que é mais fácil um camelo passar num buraco de uma agulha do que um rico se salvar. Lembra dessas palavras? Acredite em mim, assim, você vai saber que estou presente na tua vida. Eu existo, cara! Não duvide do que sou capaz de fazer!
            - Lembro de alguma coisa sim, mas eu não tenho nada a ver com isso! Eu sou rico graças ao meu trabalho e não recebi ajuda de ninguém.
            - Então eu vou refrescar a tua memória!
            A voz ficou mais violenta, até parecia que o lugar era comandado por ela, o som se tornou mais agudo e a água do lago virou lama, e várias cabeças de pessoas apareceram, suplicando ajuda. Ela ria loucamente e o eco dispersava-se pelo lago. Aos poucos comecei a entender a razão de tudo, mas já tinha provocado a ira da estranha voz. As árvores que circundavam o lago mudaram de forma, ficaram retorcidas, secas e esquisitas. Para mim, aquela paisagem era coisa de filme de terror, ainda mais que começaram a ficar violentas e agressivas para comigo. A cada momento jogavam folhas secas, que mais pareciam espinhos machucando a minha pele. Ali tudo tomava forma de vida, olhavam-me com raiva.
            - Fale então: o que eu fiz ou prometi para você que não cumpri? Mas seja breve, pois não tenho tempo para ficar ouvindo besteiras de alguém que não tem coragem de se apresentar. Eu acho que você é covarde, porque se esconde atrás de uma voz grossa e medonha.
            - As tuas palavras me fazem rir. Os ricos e poderosos realmente são criaturas que dão pena na gente, acham que podem tudo, mas na verdade são escravos da ilusão e pertencem a nós. Outra coisa: não sou covarde, e não tenho que dar satisfação dos meus atos a você! Você vai fazer o que eu estou mandando!
            Nesse momento, a risada da voz me amedrontou ainda mais. Coisa louca, a voz mais se parecia com um som vindo do inferno. Não acredito no que estou ouvindo! Não pode ser verdade, para mim é um grande pesadelo. A voz iniciou o melodrama assustador:
            - Há muito tempo, você morava num morro, cercado por traficantes e assassinos de todas as estirpes, vivia com a tua mulher, que toda noite te traía com o chefe do tráfico e não podias fazer nada. A miséria era latente, a fome fazia parte da tua vida. A vagabunda da tua mulher vivia mais tempo na cama do traficante do que na tua. A vergonha de ser corno deixava você triste e melancólico, e a gozação era grande entre os favelados.
            Na medida em que a voz ia dizendo coisas sobre a minha vida na favela, a memória foi sendo refrescada. A ficha caiu de vez. Já com semblante mais calmo, continuei escutando o que a voz tinha para falar de mim. Estava me sentindo num tribunal, sem condições de reagir. Como se fosse um juiz da época das cruzadas, a voz revelou:
            - Numa longa e triste noite, após ter ouvido, no outro lado da parede do teu quarto, os loucos gemidos de prazer da cadela da tua mulher, e sentindo profunda fome, você foi até o alto da grande pedra e pediu aos moradores das cavernas que te ajudasse a ser um homem rico, poderoso, e clamavas por vingança contra a esposa adúltera. Em troca, darias a tua alma e a das tuas filhas pequenas para o chefe da penumbra. Eu aceitei o desafio, até porque gosto de missões impossíveis, porque não é e não foi fácil ajudar você. Transformar um tolo em um homem inteligente e esperto é complicado.
            Nesse momento eu já tinha entendido tudo. Realmente havia esquecido a minha promessa, o dinheiro anestesiou a minha consciência, ou, quem sabe, o sofrimento foi mais forte do que o entendimento da resignação. Mesmo assim, permaneci em silêncio, ouvindo a tenebrosa voz espumar a cobrança:
            - A primeira coisa foi fazer de você o chefe do morro, inventando uma armadilha para assassinar o chefão e a tua mulher. Com o tempo e com o dinheiro da venda da droga, você dominou todos os morros do Rio de Janeiro. A segunda coisa que fizemos com você foi a mudança de endereço, residir numa bela e linda mansão na zona nobre da cidade, no lugar dos ricos e poderosos. Até empresário de renome nacional você se tornou. A terceira decisão foi influenciar você para que se cercasse das mulheres mais bonitas e sensuais. Por último, para coroar o nosso trabalho, ajudamos a te eleger senador da república. Todo o serviço tem um preço, nunca te esqueça disso.
            Agora que já entendeu tudo, ao acordar do nosso encontro, quero que as tuas duas filhas sejam amantes do novo chefe do tráfico num morro em Florianópolis; do contrário, você jamais vai se acordar do pesadelo e será jogado nesse lago. Olha que no lago já têm inúmeros devedores, pagando as promessas feitas. A maioria é político e empresário, ambiciosos e arrogantes, que um dia pensaram em nos enganar. Por trás de um poderoso na terra, sempre tem alguém mais poderoso que ele!
            Concordei com a voz e entendi o que se passou na minha vida. Num momento de pura dor, evoquei energias das profundezas do inferno e fiz um acordo para me tornar um homem rico e poderoso. Agora, não adianta mais, serei escravo para sempre dos chefes da escuridão. Aos poucos o lago voltou ao normal. Esse lago, na verdade, ficava no fundo da minha mansão.
            - Papai, acorda! Já é tarde e o senhor tem que pegar o avião para ir à Brasília, hoje é segunda-feira, dia de trabalho no Congresso Nacional. Na semana passada o Senhor não fez nada, ficou o tempo todo pescando no lago. Outra coisa: eu e a Fernanda vamos passar o verão em Floripa, vamos ficar na casa do Jonas, o cara é gente boa, manda muito, sabe de tudo, é um gato! Qualquer coisa ligue para nós! Beijos!
            Era a minha filha caçula, a Eliane, linda, rosto de anjo, tinha apenas 16 anos, parecida com a mãe dela em tudo, até mesmo quanto a homens. Tudo estava nos conformes, a dívida para com as sombras estava sendo paga. As minhas filhas seriam amantes do chefão do tráfico, assim como a minha atual mulher, que não sai da mansão do Rodrigo. E quanto a mim, vou fazer tudo o que os homens das cavernas determinarem!
            Bem, preciso tomar banho. Brasília, a capital da hipocrisia, dos desmandos, do roubo, enfim, o encontro dos escravos do inferno me espera.

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