quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Inusitada Despedida

O baile era bom, mas tão bom, que as horas eternizaram o momento. Todos os casais estavam dançando carinhosamente, apertados de tal forma, que nenhuma agulha passava entre eles, as mágoas do passado desapareceram de forma imediata. Os passos eram dados de forma ordenada, ninguém cometia erro, os pés não se chocavam, somente obedeciam ao som da música. O violeiro em cima do tablado fazia a gaita chorar uma inesquecível valsa, evocando a boemia e a traição do caminhoneiro. A concentração era total, as pessoas que estavam sentadas na mesa, tomavam lentamente uma cerveja bem gelada. O garçom andava de um lado para outro, observando se havia algum cliente a ser atendido.
                A música mudou de rumo, o tango de Carlos Gardel se fez presente. O dono da Bodeguita, em obediência ao pedido de um cliente, deixou o ambiente mais escuro ainda. Dois casais deixaram a pista de dança, eram iniciantes no tango, precisavam de algumas horas a mais de dança. Oito casais permaneceram dançando, mostravam a arte dos passos mágicos. O clima tornou-se mágico, a emoção ficou forte, a música de Gardel abriu o coração dos dançarinos, ninguém queria que a música terminasse. Aliás, há momentos na noite, na dança, que nunca deveriam terminar.
                Fátima e Paulo, um casal vindo do interior de Santa Catarina, mais precisamente de São Miguel do Oeste, era o que mostrava competência no vai e vem das pernas e dos braços, obedeciam ao ritual do tango argentino. Rosto colado, olhos semi-fechados, o casal deslocava-se pela pista de dança como se estivesse no ar, sem encostar os pés no chão. Já Salete e  Fernando, casal menos experiente na dança, percorria a pista observando os outros casais, como forma de aprender. Assim, todos iam ao infinito, deixando o tango acariciar a face da alma de cada um, abrindo o coração, relaxando as partes rígidas do corpo, tudo em nome da arte da dança.
                No canto do salão estava Jorge, em pé, esperando que Maria chegasse para que os dois participassem de mais uma noite de dança. Ele era frequentador assíduo da Bodeguita há mais de dez anos, sem perder um final de semana. Fazia da noite a sua casa, era viúvo e não pretendia viver com mais ninguém. Enquanto viveu casado, foi um homem caseiro, fiel, mas o destino escreveu a sua vida de outro jeito. Os seus olhos mostravam ainda a saudade de sua companheira, mesmo dançando e ficando com outras mulheres, Jorge não assumia nenhum compromisso.
                Já meio cansado de dançar, agradeci Marlene pelos momentos apaixonantes em trocar os passos ouvindo Carlos Gardel e me aproximei de Jorge, para trocarmos algumas palavras. Naquele dia, ele estava mais triste, fazia exatos dez anos da morte de Juliana, a sua eterna mulher. Jorge era o melhor amigo que eu tinha na noite, éramos confidentes em tudo. Em muitas brigas que provoquei foi Jorge, que no final de tudo, sempre me defendeu. Após cumprimentá-lo, disse-lhe:
                - Hoje você está mais triste, os teus olhos não estão aqui. Devem estar em outros cantos, talvez distantes, tão distantes que somente os teus pensamentos alcançam.
                - Amigo, você me conhece. Hoje, 23 de dezembro de 2005, faz dez anos que a minha companheira foi morar no segundo andar da vida. E para completar, ao chegar neste recinto, era a música de Carlos Gardel que tocava. Vou dizer uma coisa para você: eu aprendi a dançar tango com ela, viveu muitos anos na Argentina. Trabalhou nos melhores cabarés portenhos, chegando a dar aula de tango.
                - Mas você não pode ficar parado no tempo, é preciso sair do lugar, dar os passos em direção ao amanhã, a fila anda amigo, por mais que a gente não queira. – disse a ele tentando mostrar o outro lado da moeda.
                - Companheiro, você é diferente de mim, é poeta, conhece melhor a alma da mulher, sabe administrar melhor a perda de um amor. Eu não sei e ninguém me ensinou esquecer a pessoa que a gente ama. Eu nunca disse isso para você, eu tenho pouco tempo de vida. Carrego comigo uma doença, talvez não chegue até o próximo natal.
                - Não fale bobagem amigo, você não fuma e não bebe. Pratica esporte todos os dias e leva uma vida tranquila, sem exageros.
                - A saudade é uma doença, amigo, silenciosa, mata aos poucos, como cupim. Às vezes eu tenho uma forte dor nas costas, já fiz todos os exames e nada foi encontrado, é o mal que trabalha silenciosamente.
                Tentando mudar o pensamento de Jorge, fiz uma revelação:
                - Vamos mudar de assunto. Eu tenho uma novidade para você. A Terezinha revelou-me que está apaixonada por você e até me pediu para que fizesse a ponte entre vocês. Como você sabe, a Terezinha foi um caso meu há dois anos, mas não progrediu. Agora quer fazer parte da tua vida. Ela é gente boa, honesta, dança muito bem e é muito bonita.
                - Você não tem jeito mesmo! Chico, amigo Chico, você é um grande coração. Você é quem deveria ficar com ela, não eu. Você não gosta de loira?
                - Claro que gosto, é o meu tipo de mulher. Adoro me perder num imenso cabelo loiro!
                - Então?
                - Eu não sou um homem fiel. – respondi.
                - Ela não faz o meu estilo, até mesmo na cama, para mim ela é meio desajeitada. Nada contra, mas o sexo é importante numa relação. Quando não há química, o sexo vira uma formalidade, o melhor é sair de mansinho. O amor e a química necessitam profundamente estarem juntos. Um não vive sem o outro. Assim é com a Terezinha. A mulher tem que ter desejo pelo homem que vive, se não tem é porque não vê o homem como sendo seu.
                - Concordo com você. Assim foi o meu caso com a Janete. Vive pelos cantos chorando de amor por mim. Quando fazia amor com ela, parecia uma tremenda chateação, sem emoção alguma. Às vezes é preferível viver sozinho, morrer nos braços da noite.
                O papo com Jorge estava bom, até ajudou-lhe a sair da saudade em que se encontrava. Ficamos ali de pé, ouvindo a música do competente violeiro, que naquele instante começou a tocar uma música gaúcha. A melodia que estávamos ouvindo falava do cheiro da terra e dos pampas. Para completar o clima, procurei por Rose, uma gaúcha de primeira. Peguei-a pela mão e fomos para o centro do salão. Rose era uma linda loira, com um corpo espetacular, sabia dançar, parecia uma pluma. O Jorge não se fez de rogado, foi atrás de Terezinha e se jogaram na pista. Nenhum outro casal ousou nos atrapalhar. Tomamos conta da pista e, o violeiro, acostumado em nos ver dançar, aumentou o sacolejo da gaita. Dançamos por mais de meia hora, e as pessoas que estavam sentadas nos aplaudiram de pé. Éramos os reis da dança, em total harmonia com a música, com o universo, deixando a alma comandar nossos passos. Nesse momento, a emoção foi às alturas, os meus olhos ficaram marejados e Rose me beijou, dizendo:
                - Chico, hoje, eu, você, o Jorge e a Terezinha poderíamos até morrer, tamanha é a emoção. Esse salão de baile não é nada sem nós. Mostramos, da nossa forma, do nosso jeito, como se dança, mesmo trazendo dentro do coração um pesado fardo de sofrimento. Quando dormir, ao amanhecer, vou pedir a Deus, que me leve no final de um baile, assim irei para o céu, carregada pelos anjos que tocam viola. Como escritor que você é, vai saber escrever o que está se passando entre nós.
                Não disse nada para Rose, apenas mostrei pelo olhar, que a noite tem uma mágica que nos torna pessoas resignadas perante a morte, que eu também gostaria de morrer logo após um grande baile. Jorge e Terezinha juntaram-se a nós e disseram:
                - Chico, hoje é um dia especial! Talvez não haja um amanhã, mas o dia de hoje é tão bonito, que não haverá necessidade de outra noite. Os momentos não deveriam ser comparados entre eles, porque sempre haverá um inesquecível. Não se esqueça da conversa que tivemos hoje. E, se porventura, um dia eu venha a sair da noite, escreva sobre os nossos momentos, porque jamais serão esquecidos. Você, amigo Chico, tem um missão: contar para todos o que é viver na noite.
                Olhei para eles e o meu coração sentiu tudo, a minha alma sorriu. Lá no fundo, o violeiro, observando, recomeçou o baile tocando a música “O último Encontro”. A noite continuou até o amanhecer, e eu acabei o meu baile na casa de Cláudia. Há muito esperava por esse momento. Jorge levou Terezinha em casa e, em seguida, iria deixar Rose no seu apartamento. Assim que chegamos à casa da Cláudia, ouvimos uma ambulância gritando por todos os cantos, estava indo atender um acidente no trevo da BR 282, onde um carro havia se chocado, em alta velocidade, contra a traseira de um caminhão parado na pista.
                O baile para Jorge e Rose tinha finalmente terminado. Hoje eles estão dançando como dois mestres no além, ouvindo os anjos violeiros cantar as belas canções, que somente os cantadores da noite entendem e compreendem.

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