segunda-feira, 13 de outubro de 2014

À Beira do Rio Volga

O sol me acompanha há muito tempo, desde o início das minhas existências. A luz sempre me procurou, eu é que fiz de tudo para fugir dela. Os raios do sol, no amanhecer de vários dias, às vezes conseguia me alcançar, mas só ficava nisso. Os descompassos das minhas existências sempre foram intensos, nunca fiquei por muito tempo na Terra, era abatido em plena caminhada, porque quem procura acha. Eu sempre procurava o embate e o duelo, com a dor. No emaranhado da minha memória, não tenho lembrança se em algum momento consegui envelhecer, acabava caindo nas armadilhas da morte. Sempre me vi, morrendo de forma violenta, ou matando alguém, cruelmente. Hoje onde vivo tudo é escuro, úmido e frio. Quase sempre fico sentado numa pedra vendo as imagens do meu passado. Guerras, revoluções, estupros violentos, assassinatos, golpes de estado, roubos, cenas em que eu era protagonista. A última existência, talvez a mais violenta de todas, foi durante a Segunda Grande Guerra, onde vivi o papel de um oficial alemão, responsável por milhares de mortes. Como sempre, aos 49 anos voltei para a escuridão em consequência de uma cilada, patrocinada por oficiais superiores, que me viam como uma ameaça. Eles tinham medo das minhas crueldades. Às vezes, eu também ficava com medo dos meus impulsos violentos. Nas minhas contas, estou assim, desempenhando papéis cruéis há mais de dois mil anos, desde o apogeu do Império Romano. Se fosse contar a história das existências, precisaria dezenas de depoimentos. Hoje, vamos ficar nesse. O mais difícil de tudo é que me lembro de todos os acontecimentos, talvez seja essa a parte mais cruel das minhas vidas. Nunca esqueci, até mesmo quando estava na Terra, nas longas noites sem dormir, as imagens passam na frente, sem nenhuma censura. Acredito que tenha sido a forma que os céus encontraram para mostrar os meus erros, deixando o lençol descoberto para me punir. Determinada tarde, quando algumas pessoas de branco, caminhavam entre os desgraçados, uma linda moça se aproximou de mim e disse: - Como vai Calil? - Como você está vendo, agarrado na podridão e no lamaçal. – respondi sem dar muita atenção a ela. - Gostaria de conversar com você, posso? – perguntou a referida moça. - Podemos conversar desde que você não venha com cobranças. – respondi fugindo do olhar dela. - Eu sou a Talita, filha do Pavlov, aquele russo que você assassinou em 1780, na cidadezinha de Urla, na costa Rio Volga. - Sim eu lembro, faz tanto tempo, que até parecem cenas de um sonho macabro. – revelei, um tanto atordoado. - Eu vim aqui para conversar e não cobrar nada de você. Até porque, quem está nas condições em que você vive, não teria sentido. A justiça foi feita e continua sendo executada. – acrescentou Talita, sem nenhum ódio, apenas meiguice. - O que a filha do todo poderoso Pavlov quer comigo, assassino confesso? – perguntei sem entender nada, muito menos as razões da vinda dela no mundo podre em que vivo. - Calil, escute, a tua memória existencial nunca foi apagada para que sinta profundamente as dores dos erros cometidos. Mas tudo tem um momento para começar e terminar. O teu tempo acabou. Eu vim aqui para resgatar você do lixo e da dor. Sou a tua luz e o teu caminho, que muitas vezes fugiu. Não consigo deixar alguém muito importante, para mim, perdido no vale repleto de miséria e podridão. – revelou Talita, com ar de profundo amor e compaixão. Esse momento foi forte. Pegou meu coração na contra-mão. Fiquei tonto, viajei no tempo, indo a algum lugar das minhas existências, me vi caminhando de mãos dadas com uma linda jovem. Eu, rapaz, forte, bonito, e ela, loira, bela, com longos cabelos, como toda camponesa russa. Éramos dois jovens apaixonados. De repente, ouvi o tropel de cavalos vindo em nossa direção. Três cavaleiros se aproximaram e um deles desceu do cavalo e me agrediu com uma espada. Senti o golpe e caí no chão. Mesmo ferido, vi as cenas que se desenrolavam. A minha amada foi brutalmente estuprada até a morte. Depois dessa existência, nunca mais amei o mundo e as pessoas. Em todos os momentos, a vingança era o meu alimento, e fazia da raiva a minha bebida. Matei, estuprei todas as mulheres que encontrava pelo caminho. Perdi o amor da minha vida. Amava tanto Talita, que mesmo nos distantes locais em que vivi, a imagem dela, sorrindo para mim, surgia na minha frente. Enquanto essas imagens dançavam na memória, Talita disse: - Volte querido. Estamos aqui. Precisamos parar com o circuito de vingança. O homem que me estuprou naquele tempo em que vivíamos aquele grande amor, foi o meu pai que você assassinou enquanto dormia. Hoje, ele está aqui. Quer o teu perdão, para que possamos voltar a ser a bela família dos Karazontov do início da civilização Russa. Esqueça tudo e venha para a luz. Não vale à pena viver fugindo da luz e nos braços da escuridão. Preciso que você aceite. Quero caminhar ao teu lado. Chega de distância e de saudade. Vamos ao encontro da paz e do perdão. – exclamou Talita, com profunda emoção. - Não posso e não devo. Como poderei perdoar o homem que acabou com todas as minhas existências? Estou nesse lamaçal de vingança, ódio, rancor e outros crimes bárbaros há mais de dois mil anos. Nunca consegui viver em paz. E agora, querem que o perdão seja mais forte que a vingança e o ódio. Isso não vai acontecer. Foram muito tristes as minhas existências, até hoje não sei o que é sorrir, amar e ser amado. Fiz do rancor o meu alimento. Matei inocentes, com alegria e sem nenhuma piedade. – acrescentei, chorando muito. - Calil, meu amado, você e eu, precisamos terminar os nossos sonhos. Lembra quando você dizia que gostaria de morar numa dacha à beira do Rio Volga? Então, quem sabe, poderemos viver esse sonho, termos filhos, formar uma linda família. Você disse uma vez, que gostaria de ser pai de um menino e que ele seria um grande general russo. Quem sabe poderemos ser instrumentos, para que Pavlov reencarne, e desta maneira, mostrar que tudo é possível no reino do perdão. – ilustrou, de forma amorosa, a minha amada Talita. - Tenho medo de que alguém venha novamente destruir o nosso sonho. Receio que esse mundo que você está vivendo seja uma ilusão. Sempre vivi escondido nas ruelas e nas sombras. – falei, já com o coração mais brando e ansioso para que tudo seja diferente. - Ninguém mais vai destruir os nossos sonhos. Agora é outro tempo, evoluímos, somos melhores, compreendemos o que é crescer com a dor e o sofrimento. Aceite o meu pedido! Quero que você venha. Deixe esse mundo que nunca te pertenceu, porque você sempre foi meu, mesmo nesse tempo todo, nunca deixei de te amar. Você será levado para tratamento num hospital, onde será curado das enfermidades adquiridas ao longo do tempo. Depois de um estágio na Terra, como surdo-mudo e aleijado, voltará, para aí sim, completarmos a nossa vida, interrompida tragicamente. Seguirei os teus passos, como sempre fiz nesse tempo todo. Serei o teu anjo de guarda, segurarei firme a tua mão, para que não cometas nenhum erro, serei a tua ponte nas águas turbulentas. Se for preciso, carregarei você nos braços, para que possas avançar rumo ao nosso reencontro. – assinalou Talita, com energia, mas ao mesmo tempo, com profunda doçura na alma. Aceitei viver outra realidade. Saí dali carregado por ela. Segui a sua recomendação. Cumpri todos os passos para resgatar os meus erros. Depois de um longo tempo, após sentir na mente e no corpo as dores, voltei para a espiritualidade. Hoje estou pronto. Eu e Talita vamos reencarnar na beira do Rio Volga, para viver um casal de médicos, que atenderão pessoas necessitadas e com deficiências físicas. Teremos um filho, que virá com várias deficiências e que necessitará de todo cuidado. Nada é mais lindo e grandioso que chegar ao fim da estrada e ouvir o canto que um dia foi interrompido. Como é bom e gratificante saber que somos eternos, que temos alguém em algum lugar, que nos ama e quer que sejamos vitoriosos. As tempestades não são eternas, assim como após uma longa noite escura, sempre haverá um novo dia repleto de luz.

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