terça-feira, 21 de outubro de 2014

Sob o Jugo do Umbral

Ao ouvir a música “Sonata ao Luar”, de Beethoven, sabia que estava sendo levado para algum lugar desconhecido, mas que era bom. A minha alma, outrora destemida e guerreira, estava sendo levada tranquilamente para o descanso, onde todos querem e sonham em ir. As nuvens do céu bailavam ao sentir o meu caminhar. O mundo é vasto e o universo vai muito além de nossa curta imaginação. A calma que eu estava sentindo era irrestrita, fazendo com que meu coração batesse gradualmente, quase parando. Cada segundo da viagem parecia uma eternidade, somente ouvia a música comandar as minhas emoções. As dores e os sofrimentos estavam ficando estacionados no tempo, talvez sendo arquivados na memória espiritual. Tinha a certeza de que a morada da minha alma seria outra, aquela imaginada nos momentos de prece. Junto comigo, dois seres caminhavam, tranquilos e certos do que estavam fazendo, quem sabe, acostumados com esse tipo de trabalho. Os nossos passos não deixavam marcas, parece que estávamos volitando. O caminho era repleto de flores vermelhas e brancas, plantadas em volta de pedras redondas, parecia que foram projetadas por algum arquiteto com uma visão romântica da vida. O perfume exalado pelas flores era embriagante e, ao mesmo tempo, servia de tranquilizante. Depois de uma longa jornada terrena, onde tudo foi profundamente raivoso, triste e melancólico, os passos que eu estava dando parecia um sonho, e, para ter a certeza de que não era sonho, perguntei à moça que estava ao meu lado: - Onde estou e para onde vou? - Cristiano, você está caminhando pela planície do revigoramento espiritual. Aqui as tuas energias serão revitalizadas para o passo seguinte. Depois de um longo tratamento, ocasião em que as tuas feridas serão curadas e cicatrizadas, você estará pronto para assistir ao filme da tua vida espiritual. Todos os dias, durante um longo período, você vai ver onde errou e porque errou. Tudo será realizado com acompanhamento de um psiquiatra, que vai explicar a necessidade da reencarnação e dos resgates. – respondeu a jovem, com autoridade do que estava dizendo. - Será que vou ficar curado das minhas chagas? As dores do meu corpo não existirão mais? Os meus inimigos virão atrás de mim? Voltarei a ser o que eu era? – fiz várias perguntas a ela, me esquecendo de perguntar o seu nome. - Antes de continuarmos a conversa, eu sou Leda, e o meu companheiro de jornada, é Luís. Para cada pergunta, terá um tempo, ou melhor, o seu tempo para a resposta. Não se preocupe que aqui nada vai te acontecer de errado. Você foi retirado do poder dos chefes do umbral, por uma equipe comandada por Juliano, mentor maior dessa Colônia. Tudo vai depender da tua fé e da tua determinação em colaborar. Você permaneceu no reino das sombras do Quinto Umbral por mais de trezentos anos. No início, trabalhou intensamente contra a luz e, aos poucos, vendo as injustiças cometidas e outros atos bárbaros, resolveu abrir uma dissidência. Foi aí que os chefes do umbral colocaram você na masmorra vermelha, próximo do Sol. Portanto, aos poucos, você vai entendendo os caminhos que irá percorrer e as razões de estar em tratamento. – explicou Leda, demonstrando um grande conhecimento da Colônia. Antes de adentrarmos a um grande prédio, todo azul, Luís disse: - Cristiano, vamos sentar um pouco aqui nesse banco dessa pracinha, precisamos conversar sobre o que você vai fazer dentro desse prédio. Esse departamento cuida de todos àqueles que são resgatados das mãos dos chefes do umbral. Também acolhe os próprios líderes das sombras, que resolverem mudar de lado, ou deixar de praticar atos insanos contra as divindades celestiais. O irmão Juliano, antigo imperador romano, hoje comandando essa Colônia, tem um apreço especial por todos aqueles que estão em tratamento. Como você pode bem observar, ele é todo azul por fora e cinza por dentro. Todas as salas possuem flores do campo, dando uma visão angelical, que acalma os desorientados que aqui chegam. Não fique ansioso com o tempo. Relaxe, e procure deixar que as coisas caminhem naturalmente. Nós sabemos que é difícil. Eu também fui resgatado e hoje estou trabalhando como tarefeiro. Depois dessas explicações de Leda e Luís, fui levado para dentro do prédio. Como bem disse Luís, o perfume das flores do campo relaxava e, ao mesmo tempo, servia como calmante para as minhas dores. As minhas chagas, aos poucos, começaram a parar de sangrar. Subimos dois pavimentos e no final do corredor, do lado direito de quem entra, fui colocado numa cama totalmente branca. Adormeci por um bom tempo, nem sei quantos dias e horas. Ao acordar, dois enfermeiros me levaram para tomar banho numa banheira de água escura. Segundo eles, essa água servia de remédio para as minhas doenças. Após o banho, fui levado, pela irmã Leda, para conhecer os demais aposentos, onde observei os detalhes e a organização. Ali, tudo tinha um sentido, e nada se parecia com os departamentos de saúde da Terra. A começar pela higiene e a limpeza, o extremo cuidado com o manuseio dos equipamentos médicos deixavam qualquer um de boca aberta. Tudo era feito com carinho, pelos trabalhadores da instituição. Ao passar pelo departamento feminino, uma jovem me chamou à atenção. Era ruiva, e tinha os cabelos raspados. Perguntei para a irmã Leda quem era. Fui informado que a referida moça tinha ficado vários séculos como noiva do principal chefe do Terceiro Umbral, nas profundezas da Terra. Ela, no passado, foi filha do irmão Juliano que, por muito tempo, tentou, em vão, resgatar a filha das mãos do Chefe do Terceiro Umbral. Após a explicação sobre a moça ruiva, voltei a perguntar à Leda por que a classificação de umbral e ela disse: - Os chefes do Grande Umbral fizeram essa classificação de acordo com o grau de endividamento dos seus servidores e escravos. Essa hierarquia também serve para os próprios líderes que pretendem seguir carreira na organização do mal. A nossa Colônia fica entre o Segundo e o Terceiro Umbral, para que possamos atender todos aqueles que querem sair da lama da escravidão, ou mesmo se redimir dos seus erros. Eu, há muito tempo, também cansada de viver e servir aos chefes do umbral, pedi ajuda ao irmão Juliano, que prestava socorro na região onde eu estava. Na ocasião, foi realizada uma grande guerra entre os guardiões da luz e os soldados da escuridão. No final, foi feito um acordo e eu vim para cá. Segui todos os caminhos de recuperação e, hoje, estou muito feliz em trabalhar pelo lado da luz. - Por que você trabalhava com o mal? – perguntei, com surpresa, pois Leda parecia ser uma pessoa extremamente bondosa. - A vaidade, Cristiano! Eu era filha única de um grande minerador das Astúrias, hoje Espanha. Muito linda e cheia de pretendentes, acabei me envolvendo com o filho de um general sanguinário. Mistura de vaidade, orgulho e prepotência, segui o caminho do mal e ao desencarnar, de forma violenta, fui recepcionada pelo grande Chefe do Umbral Segundo. Fiquei ao lado dele por muitos séculos. Participava de orgias, era usada sexualmente por todos os tenentes do chefe do Umbral Segundo. No início, me achava uma rainha, sendo a predileta de homens poderosos. Nós, mulheres, nesses momentos, somos levadas pela vaidade do poder e do dinheiro. Como tudo cansa e enjoa, esses chefes da escuridão, começaram a me colocar de lado. Fiquei raivosa e por muitas vezes tentei agredir as prediletas deles. As surras foram muitas, e violentas. Depois, já cansada, nos momentos de silêncio, quando as lembranças do amor do meu pai e da minha mãe me vinham à memória, chorava copiosamente. Até que um dia, ao observar o irmão Juliano atender uma senhora, senti que era o momento da minha transformação. O resto você já sabe. Pelo que estava vendo e sentindo, todos os moradores da Primeira Colônia - agora eu já sabia que onde morava tinha um nome – possuíam uma bela história existencial. E que todos tinham passado pelas mãos dos chefes do Grande Umbral. Será que todos nós precisamos sofrer uma dor profunda, para depois caminhar para o bem? Será que a dor ensina o caminho da verdade e da luz? O tempo tem o seu momento e caminha inexoravelmente para uma direção, sempre sob o comando do Plano Maior. Eu estava bem, pronto para assistir aos meus filmes onde fui o principal ator. A irmã Leda, certa manhã da primavera da nossa Colônia, veio ao meu quarto e disse: - Cristiano, a tua hora chegou. Vamos ao Departamento de Filmes e Fotografias de Reencarnação. Você vai ter todo o tempo que necessitar, para ver as fotos e assistir aos filmes da tua existência espiritual. Essas fotos e filmes são depois da tua chegada de Capela. É importante que vejas e assistas a tudo. Depois, irás, como já dissemos, passar por um tratamento com um psiquiatra de vidas passadas, onde poderás tirar as dúvidas. Após essas demandas, o irmão Juliano irá te chamar para discutir as tarefas que irás desempenhar. Adianto, que tudo leva a crer, que teu trabalho se desenvolverá no Quinto Umbral, nas profundezas do território muçulmano, região que, há séculos, vive em guerra. Aqui não se tem pressa, mas não podemos parar. Antes de seguir para o Departamento de Filmes e Fotografias, o irmão Luís me ofereceu uma xícara de ervas, para servir de calmante nos momentos de emoção que eu iria passar. Segui os caminhos e as orientações dos referidos irmãos da luz. No primeiro ano, foi muito difícil, por alguns instantes caía em lágrimas, gritava pedindo perdão, sendo socorrido por assistentes do Departamento. Com muito trabalho, fé e humildade, vi o meu passado. Sabe, fica difícil transcrever as cenas, os horrores de todos os tipos. Não vou detalhar, até porque não precisa. Imaginem cenas das mais violentas possíveis. Imaginaram? Então, agora, vejam como o Plano Maior é bondoso conosco. Mas tudo tem o seu preço. Irei trabalhar arduamente, para pagar todas as minhas dívidas, e não escolherei tarefa. O importante é seguir em frente, com profunda humildade e sem nenhuma arrogância e prepotência. Depois de muito tempo no Departamento de Filmes e Fotos, fui levado para conversar com o irmão Fiodor, sobre as dúvidas e as sequelas das minhas reencarnações. Tivemos várias horas de diálogos. Ele era engraçado e muito gentil. Para tudo tinha uma razão de sorrir e rir das coisas. Fiodor dizia que todos ali na Colônia eram condenados e exilados de algum lugar e por algum motivo. Portanto, ninguém poderia se arvorar em afirmar que não tinha praticado erros violentos. Como bom paciente que estava sendo, cumpri rigorosamente mais uma etapa do meu tratamento. Estava no início do inverno astral, e a Colônia estava passando por uma transformação. Uma grande leva de espíritos vindos da África, em decorrência de uma febre mortal, estava chegando. Eram criaturas que reencarnaram para resgatar dívidas de outros tempos, exatamente no mesmo local que praticaram seus erros. Segundo informações colhidas com os assistentes do portal da colônia, essas criaturas eram senhores feudais que sacrificaram e mataram centenas de pessoas. Receberam tratamento na Colônia, e retornaram para cumprir as suas missões. Agora, mais uma vez em tratamento, passariam para outro tipo de encaminhamento. Segundo a irmã Leda, eu já estava na nova morada, há exatamente 20 anos, isso tudo em tratamento. Mas, para mim, parecia bem mais, porque o tempo demorava a passar, mesmo assim era dignificante em todos os sentidos. Senti que a minha hora estava chegando e o encontro com o irmão Juliano era eminente. Certo dia, numa bela manhã, quando as flores dos jardins da Colônia estavam com toda a sua exuberância, irmã Leda e o irmão Luís vieram ao meu encontro, dizendo: - Cristiano, caro irmão, venha conosco, vamos até o gabinete do irmão Juliano para conversar. Numa mistura de alegria e expectativa, segui a indicação dos referidos irmãos. Chegando lá, o irmão Juliano veio até mim e disse: - Seja bem vindo, Cristiano, há muito que espero por esse momento. - Obrigado, irmão Juliano. – afirmei, um tanto surpreso. - Como você está? – perguntou, carinhosamente. - Estou bem e pronto para novas tarefas. – respondi, muito feliz. - Então. Depois de tudo que passou, é hora de novos ares e novos compromissos. É ajudando que se é ajudado. Você foi resgatado para cumprir uma grande tarefa. No Plano Maior, tudo tem um sentido. Tem alguém muito especial que precisa da tua ajuda. É um espírito que veio contigo, na última leva dos exilados de Capela. Vocês dois se desviaram do caminho e acabaram caindo nas mãos dos chefes do Grande Umbral. Por você ser mais experiente e mais velho, o Plano Maior achou melhor trabalhar contigo primeiro, para depois tentar tirar do atoleiro, o teu neto. Hoje ele está trabalhando no Umbral Primeiro, na crosta da Terra, onde comanda a Legião dos Estupradores Vingativos. Irão contigo a irmã Leda e o irmão Luís. Não importa o tempo que levem, desde que tragam para o nosso meio, esse querido irmão que está nas garras dos chefes da escuridão. - Como se consegue ficar tanto tempo preso nas teias do mal? – perguntei, porque sempre achava estranho e, ao mesmo tempo, muito forte, o domínio que exercem os chefes do mal. - Caro Cristiano, todos nós temos fraquezas e mazelas. E são nessas fraquezas que somos dominados. Você tinha uma fraqueza, por bebidas e jogos. Logo, foi por esse caminho que você caiu na rede. Já o teu neto, Marcos, foi na área sexual. É a Lei da Sintonia, que funciona em todos os graus do universo, tanto do lado do bem quanto do lado do mal. Eu vou estar em sintonia com vocês e, em qualquer dificuldade, mandarei reforços para ajudá-los. E assim aconteceu. No dia seguinte, volitamos até ao Primeiro Umbral. Não foi fácil, as armadilhas estavam em todos os lugares. Do meu lado, sempre vinha quadros de mesas com jogos e bebidas, mostrando que estava a caminho de um luxuoso cassino. Consegui suportar as tentativas dos irmãos das sombras, sempre sintonizado com o Plano Maior, fui caminhando ao lado de Leda e Luís. Eles também tiveram suas dificuldades, cada um segundo as tendências do passado. Enfrentamos todas as vicissitudes para chegar até as redondezas da cidade do Umbral Primeiro. Ao nos aproximarmos de um grupo de homens gritando, ouvimos uma mulher, que chorava muito, pedindo ajuda. Estava sendo estuprada de todas as formas. Para mantermos a sintonia em alto, a irmã Leda disse: - Imaginem que todos estão doentes e nós somos os médicos. Imaginem que teremos que levá-los numa maca, porque estão necessitados. Não entrem magneticamente no quadro que estamos vendo, transformem o quadro com amor e carinho. As coisas ficaram complicadas. O homem mais alto e violento, olhou para mim e disse: - Conheço você de algum lugar. Venha participar da nossa festa. Essa mulher precisa de castigo. - Ele é da luz. – revelou outro homem próximo de nós. - Então, o que vocês querem aqui? – perguntou o que tinha feito o convite para eu participar da festinha. Naquele momento, senti que aquele era o meu neto. Os nossos olhos se cruzaram e as sensações do passado começaram a chegar. Ele saiu de cima da mulher e se aproximou de mim dizendo: - Será que você é quem eu imagino que seja? – perguntou, assustado. - Sou sim. – respondi, demonstrando muito amor e saudade. - Não é possível. Disseram-me que você voltou para Capela. Fiquei com raiva, e me voltei contra os homens da luz. Nesse momento, quando estava quase sensibilizando o meu Neto, dezenas de soldados dos Chefes do umbral Primeiro nos cercaram. A irmã Leda pediu ajuda pelo pensamento ao irmão Juliano, que respondeu prontamente. Não demorou muito, e o local ficou repleto de soldados da luz. Não precisou de luta, o meu Neto se jogou nos meus braços, pedindo socorro. Conseguimos cumprir a missão, levando mais de vinte criaturas que estavam nas mãos do mal. Há várias primaveras que meu neto faz tratamento. Eu, feliz, agradecido pela ajuda, continuo trabalhando na Colônia. Segundo o irmão Juliano, serei, no futuro, um dos responsáveis pela criação de outra Colônia, próxima à Colômbia. E, assim caminham os trabalhadores da luz, levando a paz, o amor e o perdão aos que precisam.

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