terça-feira, 18 de janeiro de 2011

A Balsa

A Balsa



            O vento bate forte nas encostas do Rio Uruguai, dobrando a copa das árvores. Cai uma chuva fina e o frio castiga os poucos moradores do porto de Gio-En. Estamos em julho, em pleno inverno do ano de 1960. No alto da montanha, o som do serrote ecoa no rio. Os lenhadores trabalham arduamente cortando cedro e araucária, que serão transportados para a Argentina, através do rio. De vez em quando, Gumercindo grita: “madeiraaaaa...!” e um forte estrondo se escuta. É mais um tronco que desce morro abaixo, indo cair na água, para ser amarrado em uma balsa que está sendo construída. É desta forma que se exporta madeira para o país vizinho. No total, mais de dez balsas com mais de 500 toras de madeira. Tudo é feito com muita energia e esperança. A pobreza é grande e a fé também. Todos que trabalham ali sabem que a vida é curta. A cada viagem levando toras de madeira, um pai de família sempre fica pelo caminho. A morte ronda os lenhadores.
            Eu já estou velho. Não tenho mais condições de trabalhar. Comecei com 14 anos de idade. Os meus filhos estão na lida. O mais velho morreu o ano passado, esmagado por uma tora de araucária. A Salete, a única filha, saiu de casa com 15 anos. Dizem que foi viver como mulher da vida; e a minha companheira foi embora no último outono, não suportou a solidão da costa do rio. Ela sempre quis morar na cidade. Espero que esteja bem.
            O tempo está passando rápido e com ele vem a velhice. Parece que foi ontem que cheguei aqui, vindo de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. Tinha 18 anos e tudo parecia coisa do outro mundo. Sonhava construir uma grande família, com os netos correndo por todos os lugares. Não foi isso que acabou acontecendo. Nada deu certo com os meus filhos, cada um foi para um canto. Na verdade, criamos os filhos para o mundo. Cada um segue o seu caminho. Hoje cá estou, acompanhado do tempo e do último filho, que teima em permanecer ao meu lado.
            - E aí seu Pedro? O que faz sentado nessa pedra?
Era o meu amigo Joaquim, gente boa que mora no outro lado da barranca do Rio e às vezes vem me visitar.
            - Estou aqui amigo, olhando o rio e pensando no dia de ontem.
            - Não pense não. Deixe que o tempo faça a sua história. Estamos velhos para viver do passado. O melhor é olhar para frente.
            - Joaquim, meu bom amigo, não tenho muito o que falar, a não ser sobre a minha trajetória de vida. Você também é assim.
            - Mas eu não fico olhando para trás.
            - Não é olhar para trás, amigo. É simplesmente conversar com os fantasmas de nossas vidas.
            - Vamos mudar de assunto, seu Pedro? Eu vim aqui convidar você e o seu filho para participar da festa de casamento da minha filha. Será no final do mês. Vai ter um baita baile com uma dupla lá de Chapecó.
            - Está certo. Vamos sim, Joaquim.
            - Seu Pedro, não fique assim! Você sempre teve fé na vida. Estamos aqui isolados do mundo. Escolhemos viver dessa forma.
            - É verdade, meu amigo. Não podemos reclamar. Somos pessoas simples e simples morreremos.
            - Vou embora. Está na hora, só vim para convidar os amigos da outra margem do Rio Uruguai.
            O Joaquim foi embora, mas deixou um toque de saudade, ou, quem sabe, um pouco de fé no amanhã. Ele disse que a festa do casamento de sua filha será no final do mês, mas o final do mês é no próximo final de semana.
            Enquanto isso, o trabalho prossegue na armação das balsas que serão jogadas sobre o rio.
            - Vamos, meu filho! Precisamos nos apressar para atravessar o rio. A festa do casamento da filha do Joaquim deve estar começando.
            - Já vou pai. Estou quase pronto. Hoje quero dançar bastante e, quem sabe, conhecer uma moça bonita para casar.
            - Está na hora meu filho, você está beirando os 30 anos. Não vai querer ser igual ao filho do João, que nunca casou.
            - Isso não, né? Gosto muito de mulher para ficar a vida inteira solteiro.
            Enquanto o Luís se arruma, olho para o céu e percebo que as nuvens estão se aprontando também. Estão com raiva de alguém. Quem sabe não querem que a gente vá ao casamento. Estão prometendo muito barulho. Não estou gostando nada disso. Estou com pressentimento ruim.
            - Vamos lá pai, agora é o senhor que está parado.
            Meio sem graça e contra o meu gosto, descemos para a barranca do rio para pegar a nossa balsa. Já dava para ouvir o som da viola vindo da casa do Joaquim. Ao colocar o pé no assoalho da balsa, o tempo começou a fechar, as nuvens começaram a se agitar no céu. Mesmo assim começamos a remar. De repente, a coisa começou a se complicar. Ao invés da balsa seguir em direção à margem do rio, ela começou a descer. Quanto mais nós remávamos, mais ela descia. Não adiantava. Estávamos indo não sei para onde. Lá, no outro lado da margem, o meu amigo Joaquim abanava, fazendo sinal de que estávamos indo para a morte. Estranho, muito estranho, até parece que alguém invisível comandava a balsa. Uma força que a gente não via, mas estava remando para um lugar sem volta. Meu filho chorava e gritava sem parar, dizendo:
            - Pai, a morte veio atrás de nós! Logo hoje! Vamos morrer! É o fim da nossa família.
            - Meu filho! Vamos rezar, pedir ao pai do céu que nos ajude.
            Já estávamos bem longe, quando o som de outra festa se fez ouvir. A balsa começou a se dirigir para a barranca do rio. Exatamente aonde se ouvia o som da música. Era uma festa de casamento. Todos gritavam de alegria. A balsa encostou-se à barranca do rio. Descemos e fomos até as pessoas que dançavam e bebiam.
            - Papai..., que alegria...! Meus irmãos..., que alegria...!  Vocês vieram para o meu casamento! Pedi tanto à Santa Rita que trouxesse vocês. Que imensa felicidade! Estamos todos juntos.
            Não acreditei. Era a Salete, a minha única amada filha. Pensei que era uma mulher da vida. Deus nos trouxe para o casamento dela. Ele me ouviu. Olha como ela está bonita! Como disse meu amigo Joaquim: ...”você sempre teve fé na vida”. Com certeza que, com fé na vida e nas escritas tortas, é que o Pai do Céu escreve certo. Hoje estou aqui, participando do casamento da minha filha. Alguém nos trouxe. Quem sabe as nuvens do céu e os ventos fortes, resolveram trazer a nossa balsa até aqui. Não fomos ao casamento do Joaquim, mas estamos na festa de casamento da Salete. A vida tem os seus segredos, que a gente não compreende. Muitas vezes somos levados por misteriosas correntezas que nos deixam impotentes.

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