quarta-feira, 18 de maio de 2016

VERDADE SOTERRADA

O velho portão se abriu. Ouvi um rangido meio perdido. Fazia tempo que o portão permanecia assim, parado. Desde àquele tenebroso inverno, ninguém mais o abriu. Quantas vezes ele fora aberto para deixar adentrar as mais diversas pessoas. Olhei para o lado, observei o local, não pretendia entrar. Tudo estava quieto, somente um suave vento mexia os galhos das árvores que circundavam a casa. Fiquei ali por muito tempo. Imagens apareciam e desapareciam com o balançar dos galhos. Cenas que aconteceram naquele local estavam presentes em cada metro quadrado da casa. Queria saber de tudo, nada escaparia da minha observação. Seria necessário que assim fosse, pois muita mentira foi dita e a verdade ficou escondida, ou colocada em segundo plano. Eu sabia que havia pessoas que não gostariam que a sujeira que estava embaixo do tapete fosse retirada e mostrada. Tinha vindo de longe para averiguar e escrever sobre os acontecimentos daquele tempo, que permaneciam soterrados à espera de serem levados para a luz do dia. A poeira tomava conta do local. Teias de aranha dificultavam a minha entrada, mas, com determinação e coragem, fui entrando. Não nego que o medo se fazia presente. A casa continuava a mesma, só mais velha e descuidada. Acho que já passa de 40 anos, desde o violento assassinato. A polícia esteve no local para fazer a perícia e depois nunca mais apareceu. Não fez uma diligência adequada, pois queria esconder os verdadeiros assassinos. Tudo era carta marcada para dar satisfação à sociedade. Foi usado um pobre coitado para ser o responsável pela tragédia. Tinha certas coisas que aconteceram na vida das pessoas que mudaram a realidade daquela comunidade para sempre. E essa mudança foi perfeitamente visível. As almas das pessoas que viveram ali caminhavam pela noite, nos aposentos da casa. Algumas delas ainda guardavam os acontecimentos. Gritavam por vingança, queriam ver os assassinos mortos ou condenados pela justiça. Outras preferiam apenas esquecer, deixar que o tempo cicatrizasse as feridas. Esse turbilhão de energia aproximava-se de mim querendo contar os detalhes. Eram os fantasmas que estavam vindo do além, para lutar pela verdade que fora jogada no lixo. Estavam vendo em mim a oportunidade de contar as suas histórias para o mundo. O que mais me emocionou foi ouvir o choro de uma criança pedindo ajuda aos pais. Nesse ambiente triste, era possível também ouvir uma música melancólica que vinha de muito longe. O casarão tinha se tornado um local sinistro, assim como as terras da família Almeida. Sentei num velho banco na varanda. Ali consegui perceber e imaginar como era o casarão nos tempos dos Almeida. Vozes chegavam a mim, angustiadas e tristes, mas ansiosas para relatar todos os detalhes do que aconteceu. Queriam informar que o velho Francisco não era o verdadeiro assassino. Os bandidos tomaram as terras dos Almeida e venderam para os americanos, os maiores interessados. No local foi criada uma mina de cobre, destruindo totalmente a natureza, à revelia dos mais sagrados direitos das pessoas e das leis. Eu era apenas um repórter procurando assunto para escrever uma grande reportagem. Há mais de dois meses que investigava o crime que desencadeou a construção da mina. Ao ler o processo, percebi que inúmeras falhas de instrução aconteceram. O pescador Francisco foi acusado de um crime que na realidade não cometeu. Foram outras pessoas, os verdadeiros assassinos da família, proprietária das ricas terras de cobre. Enquanto conversava com o meu subconsciente, observei que vinha na minha direção um vulto de uma pessoa. Era um senhor com passos tranquilos. Ele parou na minha frente, e disse-me: - Bom tarde, moço! O que faz aqui na casa assombrada dos Almeida? – perguntou, com ar de curiosidade. - Estou aqui para tentar escrever uma história. – respondi. - Que história? – voltou a perguntar. - Sobre o assassinato da família Almeida. – revelei. - É a primeira vez que alguém se interessa pelos fatos que aconteceram há tanto tempo. – informou, com desconfiança. - Estou interessado, mas preciso que alguém que viveu naquela época me conte os detalhes, que fale a verdade sobre a tragédia. – assinalei. - Se o moço concordar, eu conto tudo, desde que me prometa que vai publicar nos grandes jornais da capital. – sentenciou. Liguei o gravador e convidei aquele Senhor para falar o que sabia. Ele sentou-se ao meu lado e, com ar de grande conhecedor do local e da comunidade, iniciou a conversa. O dia estava ajudando, com um lindo sol. No céu, os pássaros sobrevoavam a região, demonstrando total simpatia pelo que estava para acontecer. - Eu me chamo Gumercindo dos Anjos. Moro aqui há mais de 60 anos. Trabalhei nessa casa, que pertencia à família Almeida. Eles eram proprietários de 100 mil hectares de terras, as mais ricas do Estado. Gostava muito deles, principalmente do Pedro. Homem bom e generoso. Casou-se cedo, com Ermida, e teve dois filhos. Eram herdeiros dessas terras e jamais queriam vender. Essas terras vieram da época do Império, como doação do Imperador ao Duque Almeida. Desde àquele tempo, os descendentes do Duque preservaram totalmente a herança. Na época, técnicos do governo estiveram na propriedade para analisar a possibilidade de encontrar cobre. Eles sabiam que no passado o Duque chegou a explorar ouro, mas com o decorrer do tempo o valioso metal exauriu-se. Dos estudos que fizeram, chegaram à conclusão de que embaixo da terra existia uma rica e grande mina. Mas, para isso se tornar realidade, precisaria construir uma barragem, para limpar os resíduos do minério, o que causaria um profundo impacto na vegetação do local, pois seria totalmente destruída. - O que o Pedro disse sobre a possibilidade de ficar rico com a venda das terras? – perguntei - profundamente interessado no desenrolar da história. - Pedro era um homem muito ligado à natureza. Ficou furioso com a possibilidade de transformar as suas terras em uma imensa área morta. Isso porque, com a mina de cobre, as florestas, os lagos, os rios, as cachoeiras e as mais diversas vegetações desapareceriam para sempre. Dinheiro algum valeria a pena. Ele foi muito duro com os interessados na compra das suas terras; até mesmo o governo veio procurá-lo, mas não adiantou. - E o que aconteceu depois? – perguntei, com certa ansiedade. - Na capital tinha três advogados que viajaram muitas vezes para conversar com Pedro, e em todas as vezes receberam um não. Eu testemunhei algumas conversas. Os últimos encontros foram de ameaças a Pedro. Ainda lembro do dia em que os advogados vieram acompanhados de dois estranhos e ficaram hospedados no hotel do Mário, na cidade, por um mês. Até fizeram uma última tentativa de compra das terras, mas não obtiveram êxito. - Você participou dessa reunião? – questionei. - Eu era como irmão do Pedro. Conversávamos muito. Ele tinha uma visão maravilhosa sobre a natureza. Respeitava e demonstrava muito carinho pelos rios, pelos oceanos, pelas florestas e pelas terras. Não queria ver a sua propriedade transformada num imenso deserto árido. - E onde entra o Gumercindo nessa história? – quis saber, para poder entender melhor a narrativa. - Quando os compradores tiveram a certeza de que não iriam comprar as terras, para depois serem revendidas aos americanos, resolveram armar uma emboscada. Lembro-me como se fosse hoje. Chovia muito na região. A família dos Almeida estava comemorando o aniversário do primeiro ano de vida da Maria, filha caçula do Pedro. Já passava da meia noite, quando, cinco homens encapuzados entraram no Casarão. A primeira coisa que fizeram foi prender todos os membros da família. Sem dizer nada, amarraram todos num pé de cedro, que ficava às margens do riacho que desce da montanha. Eu acompanhei tudo. Fiquei escondido nos arbustos, sem que ninguém me visse. Foi coisa horrível! Todos foram mortos a golpe de facão. Depois queimaram os corpos. Nada restou. - E a polícia, o que fez? – voltei a perguntar, emocionado com os detalhes do crime. - Foram comprados. Receberam muito dinheiro para encobrir a tragédia. Em seguida, foram à casa do Gumercindo, para plantar algumas provas, com a intenção de incriminá-lo. O coitado do homem ficou preso por mais de 30 anos. Saiu da cadeia para morar no cemitério. As terras foram tomadas, inventaram uma falsa compra, e ninguém questionou. Ficou somente esse casarão, abandonado, que serve como residência para morcegos e aranhas. Depois de dois meses, os americanos chegaram e transformaram toda a paisagem. É só olhar ao redor, para observar o que restou. É triste, mas tudo foi feito com o aval do Governo Federal, que recebeu propina da multinacional. Vários políticos ficaram ricos e até hoje recebem mesadas da mineradora. Ninguém ousou levantar a voz em defesa da família dos Almeida, até mesmo os parentes, que moravam na capital, nada fizeram. Dizem que receberam grandes fortunas, em troca do silêncio. Depois do relato, o meu coração ficou amargurado. Minha alma estremeceu em saber que nada foi feito. Imaginei quantas histórias iguais a essa ainda permanecem soterradas no submundo do Poder. E quantos políticos vivem à sombra da corrupção, sem que ninguém revele. Assim, fiquei obrigado, moralmente, a escrever tudo e lutar pela publicação da história. Já era noite, quando entrei no hotel para tomar meu banho. Ouvi a voz de um homem, que dizia que a verdade, por mais que esteja soterrada, um dia, a Justiça Divina se encarrega de trazê-la à luz, cavando o aterro fétido, criado pela ganância e pela hipocrisia, travestido de progresso. Passei mais alguns dias coletando informações sobre o episódio. Escrevi a reportagem, que foi publicada num jornal de grande circulação nacional. Foi uma bomba. O caso foi reaberto. Alguns políticos foram presos e obrigados a devolver parte da riqueza adquirida ilicitamente. A mina acabou sendo fechada, baseado no novo código florestal. Os verdadeiros assassinos foram presos e julgados. Como já eram idosos, suas penas foram brandas. Na realidade, dos cincos bandidos, somente dois foram presos. O terceiro já tinha morrido, foi assassinado em decorrência de disputas de terras no Maranhão. Os outros dois, foram considerados inocentes. Depois de cinco anos da reportagem, as terras da família Almeida foram devolvidas para um irmão de Pedro, que vivia no exterior.

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